Em vez de um emprego, dois. Ou três. Ou quatro. No “universo paralelo” do trabalho remoto, participar de duas calls de empresas diferentes ao mesmo tempo – câmera desligada, microfone no mundo – está se tornando uma ocorrência comum para os “overemployeds”. São desenvolvedores, programadores, profissionais de TI, seguros e até do setor financeiro que encontraram uma brecha no trabalho remoto para aumentar seus ganhos, sem que qualquer das empresas para as quais trabalham fiquem sabendo.
As aventuras desses “enganadores” corporativos foram relatadas em um artigo assinado por Sam Forsdick, na Raconteur, em julho. Mas quando a jornalista Rachel Feintzeig levantou várias histórias de profissionais para o Wall Street Journal que a coisa pegou fogo. São pessoas que fazem parte da comunidade Overemployed, um site criado em abril por dois profissionais de TI, que traz listagens de vagas de emprego remoto, mas cuja grande sacada é dar o caminho das pedras de como entrar para a turma dos vários empregos ao mesmo tempo.
“Bem-vindo à porta secreta para a liberdade financeira”, anuncia o Overemployed. Com citações de gente que teria conseguido duplicar, triplicar e até quadruplicar seus ganhos, seria o anúncio do “emprego dos sonhos” – não fosse o fato de que muitos estão trabalhando 100 horas em uma semana e vivem com o coração aos pulos. “O dinheiro é incrível”, diz um engenheiro de software de 29 anos, que falou ao WSJ. “Quando acordo de manhã eu penso ‘Este é o dia em que vou ser descoberto’”.
Profissionais com mais de um emprego não é uma novidade em si. Basta pensar em médicos, professores e jornalistas para ver como eles vão da clínica para o hospital, de uma escola para outra, de uma rádio para uma emissora de TV. No big deal. O que chamou atenção e criou todo o hype é o fato de que são profissionais que trabalham em escritório, com um grau de especialização e que, por estarem longe do olhar dos colegas, decidiram se aventurar para ganhar mais em um momento em que as empresas estão dispostas a contratar trabalhadores no esquema remoto e a demanda está aquecida para algumas habilidades. Então, por que não?
“É uma coisa nova no mercado, que não estava prevista e que na minha opinião é algo com o qual as empresas devem tomar muito cuidado”, afirma Caio Arnaes, diretor de Recrutamento da consultoria Robert Half. “Dentro de uma empresa, você tem acesso a informações que podem ser exclusivas e o trânsito de informações, seja de estratégias a contatos de fornecedores e clientes, pode ser uma coisa muito perigosa”.
Há pouco mais de um mês, a consultoria teve entre os participantes de um processo de seleção um candidato que chegou a dizer claramente que pretendia aceitar a oportunidades, mas não abriria mão do emprego anterior porque tinha planos de casamento para breve e com dois empregos poderia pagar mais rapidamente as contas. “Não evoluímos com esse profissional para aquela posição, mas houve uma tentativa aberta, em que ele falou ‘Vou fazer isso de tal hora a tal hora na empresa tal e de tal hora a tal hora para essa oportunidade que a Robert Half está me apresentando’. Assim, como se fosse a coisa mais comum do dia, por que não?”, conta Arnaes.
Há histórias correndo no mercado. Casos de profissionais das áreas de TI, auditoria, finanças com mais de um emprego. Muitos contratados em regime de CLT em uma empresa e como PJ em outra. Desenvolvedores se dedicando das 8 às 16h a uma companhia e das 16h às 22h, a outra – alavancando bastante seus ganhos. “Algumas empresas contratam como pessoa jurídica, que já uma contratação que traz seus riscos trabalhistas, mas a gente sabe que acontece”, diz o diretor de Recrutamento da Robert Half.
“Resumindo: sim, a gente sabe que está acontecendo. Nós não achamos recomendável para as empresas pelo risco que isso traz em relação às informações as quais esses profissionais têm acesso. E, para os profissionais, é necessário também dar uma olhada no desgaste que se tem, na qualidade de vida”, analisa.
No artigo “These People Who Work From Home Have a Secret: They Have Two Jobs”, os profissionais relatam um mix de empregos fixos, contratos PJ ou simplesmente o bom gig work que não dá direito a praticamente nada, mas traz um dinheiro extra para a conta bancária. O principal motivador para arriscar é o dinheiro, mas em muitos casos existe uma noção de que não vale a pena se matar para ser o melhor profissional da empresa – e ser ignorado quando vem uma promoção. Por isso, hoje fazem o mínimo para não serem despedidos. Carreira para quê?
Um dos criadores do site Overemployed, que assina como Isaac P., chegou a escrever um texto em que conta como após ser preterido para uma promoção chegou à ideia de que era melhor ter vários empregos para ganhar mais. O receio de ficar sem emprego, que veio na esteira da pandemia, foi um fator que contribuiu. Isaac escreve que planejava sair do tal emprego, mas logo percebeu que seria mais lucrativo não abrir mão de nenhum deles como uma “proteção contra a incerteza durante a pandemia”. “Não há mais emprego vitalício implícito, nem mesmo na IBM”, escreve. Um livro sobre o surgimento do Overemployed e as histórias narradas entre a comunidade deve ser publicado em 2022.
Apesar das complicações com impostos (que podem valer muitos anos na cadeia nos EUA), chefes irados por baixo desempenho e entregas aquém do esperado, mais gente passou a assinar a newsletter e tornou-se membro. Em 9 de agosto, eram 766 membros. Em 17 de agosto, após a publicação do artigo do WSJ e de tantos outros, eram mais de 2.300.
Rodrigo S., profissional da área de Marketing com mais de 20 anos de experiência e que preferiu não se identificar, é parte desse time dos vários empregos ao mesmo tempo. Contratado há três meses como CMO de uma startup, ele é cofundador de uma outra startup e trabalha com consultoria de marketing digital. Todos os empregos são 100% home office. “Vou te dizer o motivo: eu vim de um período difícil, tinha um negócio que não deu certo e não consegui me recolocar no ano passado. Então, estou tentando aproveitar os ventos bons, esse é o meu impulsionador. Tirar o atraso”, contou com exclusividade a The Shift.
Rodrigo trabalha atualmente cerca de 60 horas semanais. Diz que para aderir ao modelo, adaptação e resiliência são fundamentais. No seu caso, a experiência de ter trabalhado remoto desde 2007 foi essencial para conseguir “equilibrar os pratinhos” agora. E, claro, organização para fatiar seu dia. “Eu trabalho durante a maior parte do dia para a startup na qual fui contratado. De manhã bem cedo, no horário do almoço e depois das 18h, eu cuido dos outros projetos. Também aproveito um intervalo entre uma reunião e outra para mandar um e-mail, um recado por WhatsApp, checar alguma coisa”, diz ele.
Embora admita que hesitou ao aceitar as duas outras propostas, após ter dito sim para o emprego em tempo integral, ele considerou que seria possível e que o dinheiro extra ajudaria bastante neste momento. Pretende continuar? “Durante um tempo, mas não no longo prazo, não. Até porque não sou mais menino, não quero forçar minha saúde. Eu me cuido fazendo yoga, um relaxamento que me permita manter bem durante o dia. Não me vejo seguindo essa rotina durante muito tempo”, responde o profissional.
Do ponto de vista legal, ter um segundo ou terceiro emprego pode representar uma quebra de contrato e levantar questões sobre confidencialidade, que podem resultar na demissão do funcionário. No Brasil, o e-social acaba inibindo a possibilidade de dois contratos, já que determina que o profissional tenha um intervalo para descanso de 12 horas entre o final de uma jornada e início de outra. Mas para os contratos PJ, não há barreiras.
Ainda que a tendência atraia um contingente reduzido de pessoas, o risco de que inadvertidamente as informações possam passar de uma empresa para outra sempre existe. E, novamente, a carga física e emocional para esse profissional. “Tem muita gente mudando o termo work life balance para o work life blend, a mistura da vida e do trabalho. É lógico que se o profissional está disposto a trabalhar mais horas para conseguir atender as demandas de duas empresas e tudo mais, e se ele conseguir achar empresas que realmente topem isso, ele vai fazer. Mas se for fazer, eu recomendaria conversar bem com as duas empresas. Porque se ele for descoberto depois, pode ser extremamente prejudicial para a carreira”, alerta Caio Arnaes, da Robert Half. “Pode ser um superganho de dois, três meses, e uma mancha na carreira de anos”.
Rodrigo não tem planos de abrir sua situação para a empresa. Como tantos profissionais que também fazem trabalhos extras “por fora”, ele tem certeza que não está sozinho. “Certeza total e absoluta que tem mais gente como eu, principalmente as pessoas do digital. Com a pandemia, a gente foi jogado para a década de 2030, e a demanda por profissionais é gigantesca, não só por programadores. Há uma demanda por bons profissionais e oferta de salários bons, crescentes. Só que você não acha pessoas de qualidade. Quem é bom, aproveita! Estou em home office, então dá para pegar mais um trabalhinho aqui, outro ali, vambora!”.
“Olhar para conta corrente no dia em que o cheque cai, vem aquela sensação de que todo esse esforço está valendo a pena”.
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