Promover a cultura organizacional de maneira intencional é um ponto fundamental para uma organização que se enxerga como adaptável para responder a novos desafios e disposta a aprender e evoluir a partir de novas oportunidades de negócios. Uma coisa que a pandemia definitivamente nos ensinou é que para sobreviver, crescer e se reinventar, as empresas precisam de culturas que incentivem a flexibilidade, adaptabilidade e velocidade.
Em seu artigo “Overcoming Obstacles to Successful Culture Change”, os pesquisadores e consultores John Kotter, Vanessa Akhtar e Gaurav Gupta afirmam que os esforços bem-sucedidos de mudança cultural sugerem que as organizações devem começar com novas ações – e não com lideranças identificando ou articulando uma cultura esperada. “Em vez de meramente declarar o desejo de uma cultura com maior colaboração, por exemplo, você encorajaria a colaboração por meio de ações: buscar a opinião de outras pessoas, incluindo colegas juniores ou novos na equipe; incluir os usuários finais no processo de design da solução desde o início, em vez de esperar até que um novo produto esteja pronto para o teste beta; ou mais ativamente usando ferramentas de comunicação interna para compartilhar ideias e atualizações de progresso em tempo real”, escrevem os autores.
A mudança cultural tem sido desencadeada pela transformação digital, que afeta todo o design de processos da organização, mas também tem efeitos diretos sobre como a empresa passa a se enxergar e a fazer as coisas. Organizações que já nasceram digitais podem enfrentar os mesmos problemas que uma incumbente porque a necessidade de transformação está vindo mais rápido, de acordo com Alexandre Nascimento, professor da SingularityU Brazil e pesquisador da área de Inteligência Artificial (IA) em Negócios na Universidade de Stanford, na Califórnia. “Algumas empresas que mesmo tendo nascido digitais já estão se questionando porque não querem perder sua posição de destaque. Essas empresas, muitas delas gigantes no Vale do Silício, começam a perceber que o voo do foguete não vai durar tanto se não se reinventarem agora”, diz.
O pesquisador explica que em seu processo de crescimento, essas empresas tiveram de “afunilar”, ou seja, se especializaram. E nesse processo, acabam deixando muito valor de lado. “Mesmo empresas que são referência em inovação, com uma visão digital dos negócios, chega um tempo que percebem que por conta do sucesso elas foram afunilando seu mindset – e o mundo continua mudando”, afirma. Para a companhia crescer, foi estabelecido esse mindset entre os executivos que conduzem a empresa dentro daquele “trilho”, que foi a razão do sucesso. Para mudar a cultura, é preciso quebrar esse jeito de pensar e olhar as coisas e trazer pessoas diversas, com background, etnia, experiências diferentes para gerar uma disrupção. “Quando você entra no Google, na Apple ou na Amazon hoje, você está vendo uma empresa que é o fruto do trilho que foi criado nos anos 1970 por gente como Nolan Bushnell e Steve Jobs. O problema é que tirar a empresa desse trilho passa a ser difícil porque ela se aparelhou para continuar naquele trilho que a trouxe até ali com sucesso”, diz Nascimento.
Se a cultura certa não estiver lá, todo o projeto de transformação poderá terminar como um grande fracasso. É a cultura, em última análise, que vai determinar o comportamento certo para que o projeto possa vingar e a empresa se renovar. “Seus funcionários e suas mentalidades são mais importantes do que qualquer nova tecnologia que você deseja integrar, você precisa de sua total cooperação e colaboração para garantir o sucesso de suas iniciativas de transformação digital”, segundo Alon Ghelber, CMO da startup Revuze e membro oficial do Conselho da Forbes.
De acordo com a Forrester, cultura e talentos pesam muito no sucesso ou fracasso da transformação digital. Quando se trata de cultura, as organizações normalmente adotam uma abordagem de confiar nos líderes para definir a cultura e propagá-la em cascata por toda a companhia ou terceirizar a responsabilidade de moldar e construir a cultura para um grupo de gestão. Raramente traz resultados reais.
Quando esse caminho de mudança não está muito claro, é importante dar um passo atrás. Empresas que não investiam em tecnologia precisam se perguntar em qual estágio de avanço digital se encontram para traçar não apenas a melhor estratégia para a transformação digital, mas para seu rumo futuro. “Não adianta uma empresa ir da estaca zero, da fase embrionária, para um estágio alavancado sem se fazer essa pergunta antes”, diz Mariana Horno, Gerente Sênior de Recrutamento da consultoria Robert Half. Ela é responsável por duas divisões que impactam diretamente a transformação, que são o recrutamento para Tecnologia Permanente e a área de Recursos Humanos. “O fato é que as empresas e o investimento em tecnologia estão em alta e as empresas precisam se movimentar em relação a isso porque os negócios acontecem em maior frequência e de forma alavancada se eu estou a par com a tecnologia”.
O primeiro estágio é mapear essa rota, considerando quais áreas serão as primeiras a passar por essa transformação, pensando em seu impacto no restante da organização, e o orçamento disponível. “A primeira parte da conversa é a identidade de onde eu estou para onde eu quero caminhar, dentro do que é possível. Alguns negócios estão mais propícios ao investimento rápido e eu preciso acompanhar, senão como empresa posso ficar obsoleta em relação ao mercado, e outros eu posso esperar uma curva de desenvolvimento maior”, diz Mariana. Ela acrescenta que é fundamental se questionar se as mudanças pensadas vão impactar diretamente o negócio ou se a empresa decidiu ir por esse caminho apenas porque seus executivos estão lendo muito a respeito de transformação digital e isso gera uma ansiedade de que é preciso investir em tecnologia já, sem mapear primeiro. “Diante de uma movimentação digital, eu preciso ter clareza do que eu tenho e se as pessoas estão engajadas. Todo e qualquer negócio é feito por pessoas ou uma combinação da tecnologia com pessoas. Se eu não tiver o acompanhamento das pessoas nesse engajamento tecnológico, eu não tenho nada – vou deixar esses estágios pelo caminho”.
“O local de trabalho digital oferece aos funcionários as ferramentas de que precisam para melhorar sua comunicação, colaboração e conexões entre si. Implementado de forma eficaz, ele também permite que as organizações mitiguem riscos comuns, cumpram seus mandatos de conformidade regulatória e, por fim, obtenham maior valor de negócios”, atesta o relatório “The Digital Workplace”, da Deloitte.
O papel do RH nessa comunicação e no engajamento é fundamental. “Às vezes, as pessoas ficam falando de tecnologia, tecnologia, tecnologia e justamente esse match entre as pessoas, entre onde eu quero estar e como quero conduzir as coisas usando as ferramentas digitais e os times nessa mesma toada é que está faltando”, afirma Mariana Horno, da Robert Half.
Para que isso aconteça, é preciso que a comunicação das mudanças e dos benefícios que vão trazer fique muito clara. Isso precisa acontecer em todos os níveis para que o papel de cada pessoa no processo não deixe dúvidas. Para as lideranças, trata-se de avaliar cada equipe, dentro de cada área para tornar o engajamento mais rápido. Dessa forma, é possível entender ainda como as pessoas vão se encaixar nessas mudanças. “Quando eu falo de pessoas, estou falando do diagnóstico de como aquela pessoa está inserida naquele contexto, não só do ponto de vista de motivação macro, mas o que ela precisa para essa movimentação acontecer, se ela tem facilidade ou não tem com aquela tecnologia, que tipo de treinamento e que tipo de acompanhamento eu consigo dar para que ela avance para o ponto que a empresa gostaria”, explica Mariana.
No estudo de Kotter, Akhtar e Gupta, as tentativas de implantar essa cultura digital enfrentam obstáculos muitas vezes centrados em gerenciamento: por não entender completamente os benefícios das mudanças, muitos gestores podem optar pela estabilidade e confiabilidade em vez de mudança e agilidade. Nesse caso, a mudança é encarada como uma ameaça e pode ser “sabotada”, sem que a empresa jamais entenda por que não deu certo.
“Quando consistentes com a estratégia do negócio, as novas ações passam a gerar resultados tangíveis, que, quando celebrados cedo e muitas vezes em toda a organização, podem inspirar mais novas ações. Com o tempo, esse ciclo de novos comportamentos gera hábitos novos e duradouros que se tornam uma bola de neve em toda a organização. Uma vez que os comportamentos se tornam hábitos, essas novas formas de trabalhar se tornam ‘como fazemos aqui’ – em vez de instâncias isoladas, individuais ou fugazes”, escrevem os pesquisadores.
Atrair pessoas que sejam capazes de pensar diferente e fazer as perguntas que podem gerar novas maneiras de criar e fazer as coisas começa pelo recrutamento. Se a empresa não desenvolver esses questionamentos e ficar apegada ao “fit cultural”, os novos talentos sequer vão passar da porta de entrada – serão rejeitados já no processo de seleção. Nos Estados Unidos, principalmente entre as grandes companhias, o candidato tem que “ticar” tantos boxes que fica difícil aprovar cabeças pensantes divergentes.
Eric “Astro” Teller, CEO do X Moonshot do Google, chama carinhosamente as pessoas que divergem do pensamento padrão de “troublemakers”. Esses encrenqueiros que hoje fazem parte dessa divisão à parte da nave-mãe discutem o futuro da tecnologia. É dali que saiu, por exemplo, o projeto do Waymo, de veículo autônomo.
Usando o Moonshot como exemplo, Alexandre Nascimento entende que o primeiro passo para a mudança da cultura organizacional é mudar a cultura de gestão de pessoas, ou seja, quem vai ser contratado. Em seguida, para reter essas pessoas, é preciso mudar o sistema de incentivo. No X Moonshot, os profissionais são recompensados por seus esforços, ousadia, consistência de trabalho e pelas lições geradas, mesmo com o fracasso. “Porque se você vai querer inovar, mudar, virar a empresa de ponta cabeça, você vai esbarrar em trazer pessoas importantes e fortes politicamente dentro da empresa para uma zona de desconforto. Então você vai pisar no pé de muita gente. E vai atrapalhar o resultado da empresa por um tempo”, avisa o professor da SingularityU Brazil.
Uma forma de começar a mostrar benefícios para a empresa nesse momento de transição é criar um programa bem ágil e orientado a resultado rápido, segundo o pesquisador da Stanford. Nascimento insiste que não adianta dizer que haverá uma mudança e que os resultados serão vistos daqui a um bom tempo e que tudo vai ficar bem. As lideranças podem identificar ganhos rápidos em algumas áreas e designar times para trabalhar nessas questões, com investimento de pouco tempo e energia e trazer um resultado visível
“Ao criar uma agenda de pequenos ganhos rápidos, você consegue criar empatia dentro da empresa. Vai trazendo resultado rápido, começa a criar reforço positivo e com isso vai erodindo a resistência interna para criar uma flywheel, uma espiral positiva”, diz. “É basicamente pegar dores existentes da empresa que estão incomodando há dois, três anos, e ver o que pode ser resolvido rapidamente, dentro de uma mentalidade digital”.
Veja a seguir três “armadilhas” mais comuns para a mudança cultural e que estratégias podem ser usadas para enfrenta-las.
1.Não conectar a cultura aos resultados de negócios. Sem definir métricas fica difícil afirmar que houve progresso ou avaliar quais esforços são eficazes na mudança cultural. A ideia de que a cultura não pode ser medida faz com que lideranças queiram investir pouco ou sequer priorizem o projeto. O foco deve estar no impacto de novos comportamentos ou ações medidos por pesquisas ou métricas de negócios. Dessa forma, ela vale para toda a empresa, em todos os níveis, chegando ao individual – que é onde a verdadeira mudança de cultura acontece. Outro ponto: não adianta copiar a lição do coleguinha mais velho. A cultura de cada organização deve estar alinhada com sua estratégia e ligada a seus valores, propósito e visão. Vale lembrar também que a mudança de cultura em si não é um objetivo: é um meio de alcançar um determinado resultado. Ela deve estar profundamente integrada à estratégia geral de negócios e os novos comportamentos reforçados e celebrados. E ao relatar os resultados do negócio, destaque explícita e regularmente como esses novos comportamentos e formas de trabalhar contribuíram para esses resultados.
2.Cultura não se muda por decreto. O design centrado na gestão de muitas organizações reforça a prática de que a cultura vem de cima para baixo. Os esforços de mudança, especialmente as iniciativas de mudança cultural, não têm sucesso quando isso é feito. As lideranças devem encontrar um equilíbrio entre desempenhar um papel na definição intencional dos comportamentos que esperam ver e criar espaço para os funcionários moldarem a cultura. O sucesso acompanha as iniciativas em que as lideranças enxergam seu papel mais como formadores ou guias dessa cultura. Na prática, a mudança acontece quando as pessoas entendem a razão das mudanças necessárias para um objetivo. Novos comportamentos e modos de pensar que podem levar à mudança devem ser reconhecidos e encorajados.
3.Ficar no meio do caminho. Ver os primeiros resultados da mudança traz um senso de celebração. Mas não podem ser confundidos com hábitos, que surgem a partir da repetição. De novo: métricas devem ser usadas para avaliar os avanços. As lideranças também devem encontrar maneiras de continuar a descobrir e compartilhar exemplos da cultura desejada aplicados na empresa. Ver a mudança cultural como uma forma de possibilitar resultados de negócios também é útil para garantir a sustentabilidade. Quando a nova maneira de fazer as coisas se tornar apenas a maneira de fazer as coisas, a cultura vai evoluir e se adaptar. Como tem que ser.
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