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ENTREVISTA

Ale Santos imagina futuros com tecnologia e protagonismo negro

Escritor afrofuturista, comunicador digital e especialista em gamificação, Ale Santos questiona o desenvolvimento tecnológico que ignora desigualdades

Por João Ortega 20/11/2020

Tecnologia e ficção se entrelaçam na trajetória profissional de Ale Santos. O comunicador do interior paulista trabalhou criando narrativas na indústria de games, antes de começar a desenvolver estratégias de gamificação para empresas como a HSM e o evento IT Forum. Tornou-se referência em storytelling e conteúdo digital, fundou uma consultoria de entretenimento estratégico e agora se prepara para lançar seu primeiro romance afrofuturista.

Imaginar o futuro sob a perspectiva negra e mostrar os impactos da tecnologia na sociedade são os principais temas das narrativas do escritor. “Acredito na ficção para ajudar a reconfigurar o imaginário brasileiro sobre as pessoas negras”, afirma Ale.

O ativista critica a dinâmica excludente que predomina no ecossistema de inovação. “Não acredito na tecnologia para resolver desigualdades porque não é o que tem acontecido”, afirma. “Toda discussão sobre programação, startup e inovação fica distante de quem não tem oportunidade de acesso”.

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A opinião de Ale Santos está alinhada a dados de um relatório recente da Associação Brasileira de Startups (Abstartups) sobre inclusão, que mostra que mais da metade das startups no país não têm nenhuma pessoa negra na equipe. Entre fundadores, esta população representa apenas 29% do total.

O mesmo problema está presente, inclusive, entre as Big Techs. Relatórios de diversidade apontam baixa presença de pessoas negras entre os técnicos do Google, Microsoft e Facebook. Desde 2014, estas empresas firmaram compromissos por maior diversidade, mas a proporção segue inalterada.

No entanto, Ale enxerga um movimento de retomada da história negra no Brasil, com a ascensão de comunicadores nas redes sociais e a organização do Black Money.

Há 14 milhões de afroempreendedores no país e R$ 1,7 trilhão que podem movimentar a Nova Economia. “Estamos contando uma nova história que vai sendo criada pelo youtuber, pelo ‘twitteiro’, pelo podcaster”, diz.

Neste Dia da Consciência Negra, a The Shift convida o leitor a refletir, com os insights de Ale Santos, sobre o futuro para o qual caminhamos. É hora de repensar o modelo excludente que impera no mundo corporativo, especialmente no setor de tecnologia.

“Disrupção é…

Conseguir romper uma dimensão social. É romper um paradigma tecnológico que vai muito além de bytes e do ciberespaço, pois quebra barreiras sociais do mundo em que você vive. Contesto muito a noção de disrupção de quem cria hipertecnologias e, no final das contas, não percebe que existem milhões de brasileiros que nem acesso à banda larga têm. Esse é o tipo de ‘disrupção’ que só favorece uma bolha. O disruptivo é mais abrangente, no sentido de mudar a realidade em que vivemos.

Antes de ser o Ale que fala de negritude no Twitter, fui consultor de gamificação da HSM, gamifiquei o maior evento de TI da América Latina e trabalho com storytelling há mais de dez anos.

Acredito na ficção para ajudar a reconfigurar o imaginário brasileiro sobre as pessoas negras.

Em 2013, representei o Brasil em um concurso mundial de ficção científica. Sempre fui um fã desse gênero e questionava o fato de ser dominado por homens brancos.

Hoje estou trabalhando em “O Último Ancestral”, meu primeiro romance afrofuturista, e envolvido em séries para streaming. Levar a discussão racial para a ficção e a fantasia pode atingir uma massa diferente de pessoas e mostrar para a sociedade o impacto da tecnologia em cada um dos círculos sociais.

Afrofuturismo é um termo cunhado pelo produtor de arte Mark Dery na década de 1990. Porém, a ideia de imaginar o futuro e a experiência de vida negra dentro de uma sociedade utópica vem desde a década de 1960, desde o Sun Ra, passando pelo Afrika Bambaataa e o início do hip-hop.

Este tema está aparecendo agora para muita gente por causa do filme Pantera Negra, um subgênero da ficção científica que usa a estética afrofuturista para imaginar novas realidades e novas tecnologias.

O mais importante é ter em mente que o afrofuturismo também é um movimento social e político.

Não é o caso do JJ Abrams criando Wakanda, por exemplo. Teria que estar associado a um diretor negro e um roteirista negro, porque tem a ver com a experiência de vida de criadores negros rompendo barreiras sociais dentro da produção de conteúdo, seja no cinema, na literatura e em tudo mais.

Há quatro anos, estava trabalhando na gamificação do IT Forum. Me considerava um negro tentando se inserir no meio de tecnologia digital. Mas, mesmo naquela época, hoje vejo que já tinha aspirações afrofuturistas. À medida em que vi este conceito se formatar para a cultura pop e a discussão crescer na sociedade, percebi que seria o caminho a tomar para promover minhas ideias e me conectar com o público.

Decidi abraçar o afrofuturismo como uma posição política de escritor para confrontar o epistemicídio na literatura e dentro do mercado de TI.

Não acredito na tecnologia para resolver desigualdades porque não é o que tem acontecido. Atualmente, por exemplo, a Apple lança celulares cada vez mais avançados, só que essa tecnologia não chega na periferia. Os avanços tornam a tecnologia mais cara e mais distante da população.

O mundo dos games representa bem a desigualdade. A população mais periférica está nos jogos que rodam em dispositivos mais simples, como o Free Fire, que terá inclusive uma Copa das Favelas. E as classes mais altas acessam games que precisam de banda larga e dispositivos melhores.

A Internet deveria ser um direito básico para todas as pessoas, como é a água e a eletricidade. Toda discussão sobre programação, sobre startup e sobre inovação fica distante de quem não tem oportunidade de acesso.

O Amapá está há duas semanas com apagão de eletricidade. A tecnologia evolui e fica mais cara ao mesmo tempo em que esses lugares vão ficando mais isolados na discussão. É o que o Yuval Harari alerta sobre o avanço tecnológico criar pessoas invisíveis. A pandemia evidenciou milhões de brasileiros sem CPF e que nunca haviam acessado a internet.

As empresas de tecnologia acham que estão transformando o mundo, mas cada vez mais a população pobre fica desconectada das discussões tecnológicas.

Há um tipo de colonização digital, com os unicórnios saindo da Avenida Paulista e levando empregos precários para os entregadores que estão lá na periferia. Esse é o paradigma atual de inovação. É hora de mudar esse paradigma e colocar a periferia no centro da discussão, assim como o interior do país, porque hoje ela é concentrada em um eixo seleto de capitais.

Recentemente, vi uma iniciativa que iria escolher vinte startups para investir um milhão de reais em cada. Mas todos os critérios e padrões de seleção levavam às empresas que já estavam maduras e situadas na cidade de São Paulo. Como o problema é estrutural, precisamos repensar e voltar alguns passos do processo de seleção.

Existe um gap educacional, e o empreendedor por necessidade pula etapas de aprendizado sobre business model, sobre como usar tecnologia. Se o mercado quer ser verdadeiramente inovador, ele precisa entender a realidade brasileira e dar suporte para o empreendedor de acordo com as diferenças de oportunidade.

Black Money é um caminho para o desenvolvimento da população negra no país. Temos 14 milhões de afroempreendedores no país, sendo a maioria microempreendedores.

Negros no Brasil movimentam R$ 1,7 trilhão de reais. Há um potencial enorme para fazer a economia do país girar, atingir um PIB muito maior, se a população negra fizer parte da pauta econômica, se governo e empresas apoiarem e compreenderem a realidade desses empreendedores. É um esforço coletivo.

Representatividade impacta na experiência de vida das pessoas. O jovem da periferia não se enxerga além da realidade que está a sua frente.

Mitos e narrativas consolidam a nossa visão de mundo. Você vive num universo onde não pode ser o herói, o protagonista, o médico, o intelectual. A população negra não pensa sobre isso, na infância nunca pensei em ser escritor. Quando a gente aumenta a representatividade, desbloqueia o imaginário não apenas das pessoas negras, mas das brancas também.

A representatividade normaliza a experiência de vida negra e acaba com o imaginário prejudicial que há na mente das pessoas. Mas ela tem limites, pois há um problema estrutural.

Não vai resolver, por exemplo, a falta de acesso da população negra à saúde, à segurança, à tecnologia e às oportunidades no mercado. Ela diminui preconceitos, mas não soluciona questões estruturais.

Partimos de um hiato na história. A África foi silenciada por centenas de anos. Temos um hiato de intelectualidade negra no Brasil. Desde quando o primeiro negro foi escravizado, e até na abolição, as pessoas não pararam para se dar conta da perspectiva negra sobre tudo que estava acontecendo.

O que vemos agora é um movimento de pessoas negras surgindo na academia, no entretenimento, em todas as dimensões da sociedade, e se tornando um novo ponto de partida. Tem uma frase africana bem conhecida: “até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias vão sempre ovacionar os caçadores”.

Estamos nos tornando os próprios historiadores e contando uma nova história, que vai sendo criada pelo novo YouTuber, pelo novo ‘Twitteiro’, pelo novo podcaster. Cada um de nós vira uma referência para muitos. Isso é uma disrupção”

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