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Eduardo Fischer é CEO da MRV: "Depois do celular, a casa é o produto que o cliente mais vai usar. Só que ele troca de celular, mas fica na casa" Crédito: Gabriel Araujo
ENTREVISTA

“O setor de construção está começando um ciclo de mudança”

E nesse ciclo entram novos modelos de construção e venda de imóveis, oportunidades de novos negócios e de reinventar o relacionamento com o cliente, diz Eduardo Fischer, CEO da MRV

Por Soraia Yoshida 18/03/2022

Poucos setores podem se gabar de ter uma demanda muito maior do que a oferta como o mercado imobiliário residencial. Responsável em grande parte pela manutenção do setor de construção civil nos últimos anos, o segmento avançou 26,1% em 2020, pleno ano de pandemia, e registrou alta de 72,1% no segundo trimestre do ano passado frente ao mesmo período, segundo dados da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Somente em São Paulo, maior mercado do país, as vendas de imóveis cresceram 6,1% em janeiro, com um acumulado de 27,3% em 2021.

“Tem mais gente querendo morar do que casa sendo feita no Brasil e isso é um problemaço”, diz Eduardo Fischer, CEO da MRV, para logo emendar. “Isso significa uma oportunidade muito grande para a gente”.

A MRV é a maior incorporadora do Brasil. Faz parte do grupo MRV&Co, descrito como uma plataforma habitacional, composta pela MRV e quatro empresas que oferecem a soluções de moradia, como Luggo e Urba, que emprega mais de 33 mil funcionários diretos e indiretos. Segundo reportagem do Estadão, a MRV&Co discute a possibilidade um IPO de sua subsidiária norte-americana AHS. A MRV é a principal empresa com atuação no programa habitacional Casa Verde e Amarela (que substituiu o Minha casa, Minha Vida), em que o FGTS é a principal fonte de recursos. O segmento de baixa renda, como é chamado, responde por uma boa parte dos projetos da companhia, que tem atuação nacional. E o brasileiro, de acordo com outra pesquisa da Abrainc, quer ter sua casa própria. Basta ligar os pontos e entender por que a demanda continuou alta nos dois últimos anos.

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Mas se o “sonho da casa própria” ainda parece coisa de antigamente, esse cliente que busca o imóvel não é. Com um perfil mais jovem, digitalizado, ele espera que a experiência da compra seja muito mais fluida e conveniente – algo que deveria se estender para todo o projeto. “Eu estou realizando um sonho importante, que é o da casa própria, mas eu vendo um produto, certo? Fora o celular, deve ser a coisa que essa pessoa mais vai usar. A diferença é que ela vai usar meu produto por 25, 30 anos”, diz Fischer, em entrevista exclusiva para The Shift. “A grande disrupção vai vir do comportamento do cliente. O que o cliente quer daquela casa, de como ele vai enxergar o uso daquele espaço”.

Enquanto a área de pesquisa e desenvolvimento olha para a questão de como avançar em um setor altamente tradicional que é a construção civil, as oportunidades de novos negócios vão pipocando. A MRV fechou no final do ano passado a venda de 5,1 mil unidades de apartamentos da Luggo, startup que opera como uma divisão de aluguel de imóveis da construtora da família Menin, para a Brookfield. O negócio de R$ 1,2 bilhão reforçou para o mercado a aposta nesse novo segmento, de quem “usa o imóvel” e não necessariamente quer ser dono.

“A Luggo é um excelente exemplo de como tendo um negócio supertradicional pode encontrar oportunidades”, diz Fischer. “Ela nasceu de uma ideia aqui de dentro da MRV, de como a gente poderia ter um modelo diferente, aproveitando nosso expertise. Testamos e deu certo”.

Testar ideias para inovar é algo que a companhia pode se dar ao luxo de fazer. “Temos hoje 280 canteiros de obra acontecendo Brasil afora. Eu posso testar um monte de coisa, eu tenho esse espaço. Dá para testar em mercados diferentes, como São Paulo, Rio, Porto Alegre e Belo Horizonte e ver qual é a resposta. A gente tem a obrigação de deixar esse espírito de inovação fluir. Encontrar o equilíbrio entre o peso da gestão de uma empresa grande e a leveza suficiente para ser moderna é que é o desafio”, diz

Formado em Engenharia Civil pela Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC) e com MBA em Finanças pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC), Eduardo Fischer soma 29 anos de experiência na companhia. Ele começou como estagiário na empresa e posteriormente ocupou os cargos de engenheiro de obras, coordenador de obras e diretor de produção. “O déficit habitacional que temos vai ser um dos grandes desafios para o Brasil e para o mundo nas próximas décadas. Se eu pudesse escolher de novo uma carreira para seguir, escolheria esta aqui. Por quê? Porque tem oportunidade, impacto social positivo muito grande e isso é bom. É um dos poucos setores em que a oferta é menor que a demanda: tem mais gente querendo morar do que casa sendo feita no Brasil”, disse.

 

Disrupção é…

 

“Acho que a grande disrupção do setor de construção virá do comportamento do cliente. O que o cliente quer daquela casa, de como ele vai enxergar o uso daquele espaço.

Meu filho mais velho tem 21 anos. Ele faz Engenharia Mecânica e é apaixonado por carro desde os 5 anos de idade. Quando ele fez 18 anos, eu disse ‘Vou te dar um carro’. E ele me respondeu: ‘Não quero’. Como assim não quer? Não quis e não tem carro até hoje, ele vai de Uber ou pega táxi. Quando ele tiver 28, 29 anos, que é a idade média dos clientes da MRV hoje, será que ele vai querer comprar ou será que vai querer usar uma casa? Essa é uma preocupação para qual o setor tem que olhar.

Temos em São Paulo o maior empreendimento de nossa história: são 7.500 apartamentos, é praticamente um bairro com 26 empreendimentos diferentes. Ele foi pensado com prédios e mais prédios de estacionamento que hoje estão ocupados. Daqui a 10 anos, corre-se o risco de ter vários esqueletos subutilizados ali. Por isso eu digo que a maior preocupação é o comportamento. É possível que a gente tenha cada vez menos donos de carros, mais serviços de mobilidade.

É por isso que estamos experimentando modelos diferentes aqui na MRV.

Você já teve a oportunidade de comprar um imóvel? Deve ter sido a pior experiência de compra que você teve. Gera um estresse que só quem já comprou faz ideia.

É uma experiência de compra horrorosa porque você está colocando todo o dinheiro da sua vida ali e recebe um pedaço de papel em troca. Pensando no nosso cliente, que muitas vezes está comprando seu primeiro imóvel dentro do segmento de baixa renda, o nosso ponto de partida foi: como é que a gente pode trazer mais transparência e dar mais segurança para o nosso cliente? Foi aí que decidimos simplificar o contrato.

O contrato de compra de um imóvel tradicionalmente tem termos complicadíssimos como alienação fiduciária, hipoteca, escritura. Decidimos tornar isso o mais humanizado, mais fluido possível. Esse novo cliente é alguém com quem vamos ter um relacionamento de 25, 30 anos. Não pode ter letra pequena no contrato. Você não pode ficar tentando esconder coisa do cliente. Pensa que esse cliente vai estar com você 30 anos.

Chegamos um formato de contrato bem mais fácil de entender, que tem gráficos para simplificar esse processo que é tão complicado. Nós até apresentamos esse modelo à justiça para mostrar o que estamos fazendo. Uma iniciativa como essa pode simplificar e eventualmente judicializar muito menos porque vai ficar claro para as pessoas que estão comprando o imóvel como funciona. Em muitos casos, o cliente percebe depois que está no contrato, mas o corretor falou outra coisa. As discussões nascem de entendimentos diferentes. E tudo o que eu não quero é isso.

Sinceramente não sei dizer assim quando exatamente caiu a ficha de que a gente tinha que olhar para o aspecto da sustentabilidade. Eu sei que não aconteceu de uma vez, nada do tipo ‘o céu se abriu e uma luz desceu e nos iluminou e partir de hoje vamos fazer de tal jeito’. É uma jornada de amadurecimento.

Antes quando você falava com investidores sobre as árvores que tinha plantado como ação do Instituto MRV, das iniciativas no front social, eles agradeciam e diziam vamos aos números. Não tinha eco, não tinha interesse. Hoje já mudou.

Eu te garanto que em 2030 vai ser muito melhor, uma jornada mais completa do que temos hoje. Acho que a sociedade, de forma geral, vai ser assim.

Coincidentemente, hoje mais cedo eu estava falando com trainees e dizendo que para uma empresa permanecer relevante e ter a condição de fazer a diferença, ela tem que ser eficiente. Eu ouvi em uma palestra uma coisa que nunca esqueci: empresa que está no vermelho não pensa no verde. E desde então eu carrego isso comigo.

A gente tem que ter clareza de visão de quais iniciativas vão trazer eficiência, manter a companhia lucrativa para fazer o que deseja, aquilo que sonha.

A MRV é uma empresa de 42 anos e temos há muito tempo iniciativas sociais. Fala-se muito hoje em ESG, mas as empresas brasileiras sempre foram demandadas para atender mais o S. Porque a questão social ganha mais urgência no Brasil.

Há alguns anos, nós formalizamos as iniciativas através de um veículo para fazer investimento social, que inclui um projeto de voluntariado como forma de engajar as pessoas, que é muito importante.

Se você circula aqui dentro das unidades da MRV, vai perceber que nós somos uma empresa jovem. Os executivos, os profissionais do nosso corpo técnico são jovens. E essas pessoas, como grupo, têm demandas específicas. Hoje em dia, não é mais salário ou carreira que importam, as pessoas querem propósito. E o ESG é um veículo para você conectar o propósito da pessoa com o da companhia. Ela enxerga que está em um lugar onde tem muitas possibilidades de aprender, fazer uma carreira legal, crescer financeiramente, tudo isso conectando com algo em que acredita.

Mais do que os bancos, que procuram investir em empresas que implementam políticas ESG, para mim o mais importante é o público interno. O meu principal foco é dentro da empresa. Os clientes ainda têm percepção menor do impacto dessas políticas ESG porque eles estão muito focados em sua necessidade básica, que é a moradia. Então talvez não diferenciem isso de uma empresa que tem impacto positivo para outra que não se preocupa com isso. Mas está melhorando.

A gente tem que estar à frente dessa mudança.

A pandemia mudou tudo. Antes, o fato de boa parte da nossa operação estar em Belo Horizonte, nos colocava em uma posição de vantagem para atrair talentos. O trabalho remoto mudou isso e agora tenho competição de empresas de todo o Brasil, até do mundo se bobear. Com isso, ganhou mais importância essa conexão com o talento interno. Então, nós queremos ser essa companhia na qual as pessoas querem estar e que faz a diferença.

Se tem uma coisa que o Brasil não tem carência é de problema.

O maior desafio do Brasil é educação. Se a gente não resolver isso, não tem solução para o resto. Simples assim. E a gente tem que evoluir, ainda que mais lentamente do que deveríamos. Eu estou em uma posição em que consigo enxergar isso muito claramente.

O setor de construção civil é muito intensivo em mão de obra, que normalmente é de baixa qualificação. Muitas pessoas são analfabetas funcionais. Por isso o instituto criou uma iniciativa de ter aulas no canteiro de obra. É muito difícil alfabetizar um adulto, mas é uma tentativa de resgatar a cidadania dessa pessoa. Ao fazer isso, a gente dá aos trabalhadores uma habilidade para que possa ser mais produtivo. Tem uma lógica racional e econômica de engenheiro que norteia nossas ações. Para manter a empresa competitiva, eficiente e apostarmos nos projetos que queremos.

A pandemia deu um empurrãozinho aí na nossa transformação digital. Estávamos trabalhando no desenvolvimento de uma plataforma digital para fazer todo o processo de comercialização, quando a pandemia estourou. Nós aceleramos o roll out, o que significou que o nosso cliente tem a habilidade de fazer a compra dentro da plataforma.

Colocamos um bot para fazer a primeira interlocução e tirar dúvidas, o que melhorou muito a satisfação porque o tempo de atendimento caiu para um terço. É possível fazer o processo inclusive de comprovação de renda, definição do imóvel, de quanto o cliente quer pagar. Só se vai ao estande para finalizar o processo.

Apartamento decorado é meio um padrão do mercado. Desde a pandemia, não temos nenhum apartamento decorado. O nosso modelo é virtual. A pessoa entra no espaço vazio, coloca os óculos RV e faz uma imersão no imóvel, em que pode testar acabamentos diferentes. É muito mais rico como experiência.

No final de semana em que lançamos esse modelo em Bauru [cidade no interior de São Paulo], teve fila para ver como funcionava.

Essa é a lógica que estamos amadurecendo e tentando criar dentro do nosso setor.

Eu estou realizando um sonho importante, que é o da casa própria, mas eu vendo um produto, certo? E esse produto vai ser usado pela pessoa durante metade 12 horas ou mais do dia dela. Fora o celular, deve ser a coisa que essa pessoa mais vai usar. A diferença é que ela vai usar meu produto por 25, 30 anos. Nesse meio tempo, vai trocar de telefone, de carro.

Uma coisa que a gente diz muito aqui dentro da MRV é que o nosso relacionamento começa com o cliente no momento que lançamos o empreendimento, amadurece quando vendemos uma unidade e meio que termina quando entregamos as chaves. Dali para frente, via de regra é um relacionamento de desgaste. O cliente me procura se tem algum problema e eu o procuro se ele me deve alguma coisa. Não é um relacionamento dos melhores.

É um desperdício de relacionamento brutal. Por isso estamos começando a criar ferramentas que eventualmente poderão virar negócios lá na frente para fazer com que esse relacionamento seja um diferencial para essas pessoas ao longo da vida.

Na eventualidade de acontecer alguma coisa com o apartamento, a gente tem uma equipe dedicada para atender o cliente de maneira local. Só que à medida que o relacionamento amadurece, os problemas diminuem, essa equipe poderia prestar outros tipos de serviço para o cliente. Instalar um varal, por exemplo. Será que eu posso vender um seguro para esse cliente? Será que não consigo trazer esse cliente para dentro da minha plataforma quando ele decidir vender o imóvel? Tem muita coisa que estamos pensando para estender o relacionamento com o cliente, para que ele fique a vida toda conosco. E para que cada momento dessa etapa ele entenda que fez o melhor negócio da vida dele escolhendo morar no MRV.

Um dos negócios que criamos é a Luggo. A gente aproveita a expertise da MRV em comprar terrenos de forma eficiente, projeto para empreendimento, só que ao invés de vender, nós alugamos tudo. A aprovação de crédito é rápida, o cliente escolhe a unidade, marca a vistoria e tem a experiência de morar muito diferente do que teria no aluguel convencional.

Temos concierge o tempo todo, serviços de lavanderia da Omo para pagar à parte, internet de alta velocidade, mercadinho self service, choperia. Quer um carro compartilhado? Também tem. Para você ter uma ideia, nossos clientes gastam em média 15% do valor do aluguel em serviços. Olha que número legal.

Tudo isso transborda para dentro da MRV. Porque se funciona para a Luggo, vai funcionar também para a MRV.

Eu acho que construção civil vai passar por um processo de modernização industrial cada vez mais curto. Eu enxergo que a gente está começando um ciclo de mudança em que teremos uma renovação de processo construtivo que se encaminhará para uma industrialização maior nos próximos dez anos.

Temos uma área de pesquisa e desenvolvimento que está experimentando muitas coisas novas e em cinco, dez anos, vamos estar falando de algo diferente não apenas no Brasil como lá fora.

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