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Crédito: Aobe

Micromobilidade: solução sustentável e integrada

Entenda as vantagens da micromobilidade, o cenário no país, e conheça um case brasileiro de sucesso em sistemas de bicicletas compartilhadas

Por Victor Santos 24/11/2020

Ciclovia Avenida Paulista

É difícil encontrar algum brasileiro residente em centro urbano que não tenha se estressado com problemas de mobilidade em dado momento de sua vida. Transporte público ruim caro? Metrô lotado? Lotação demora para chegar? Pegou trânsito “amassado” de novo no trem e no ônibus? E para quem se locomove de carro, hoje foi mais um dia de congestionamento – horas parado ou andando devagarzinho – que fez a irritação subir à cabeça? Opa, cuidado que o carro de trás quase bateu no seu.

O desgaste físico e mental de quem passa muito tempo em viagens de casa para o trabalho ou para a escola poderia ser em si um argumento para rediscutir a mobilidade urbana. E que tal refletirmos o quanto isso pesa no bolso?

Um cálculo realizado pela Quanta Consultoria aponta que o Brasil perde R$ 267 bilhões ao ano por causa de congestionamentos na ida e volta dos trabalhadores para os seus locais de trabalho. Esse tempo gasto em deslocamentos poderia, por exemplo, ser convertido em mais gastos com lazer, educação, saúde e bem-estar, e mesmo gerar mais renda.

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A adoção de formas alternativas a esse transporte é que deu força à micromobilidade. Em vez de carros, pessoas andando a pé. Em lugar de carros buzinando, patinetes cortando por ruas laterais.

O que é micromobilidade?

De acordo com o Dicionário Merriam-Webster, micromobilidade é o transporte em distâncias curtas fornecidas por veículos leves, geralmente para uma única pessoa (como bicicletas e scooters). O termo é relativamente novo e engloba os veículos leves, de propulsão humana ou elétricos, particulares ou compartilhados, com velocidade de até 25km/h.

O foco é cobrir distâncias curtas, como de um a dois quilômetros, mas nada impede que alcance até 10km. “É um conceito que tem muita conexão com o transporte público”, explica Clarisse Cunha Linke, diretora executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP). “Isso ocorre à medida que aumenta a área de captação de cada estação de transporte público de média ou alta capacidade. O usuário pode pegar uma bicicleta ou patinete e se conectar com a estação. São soluções convenientes e baratas”.

Considerando que a tendência global para melhorias na mobilidade urbana e queda nos congestionamentos diz respeito à integração de diferentes modais, Clarisse aponta que esse apoio da micromobilidade acaba sendo essencial. “Uma das possibilidades é a consolidação de um sistema tronco-alimentado, em que temos corredores estruturantes de transporte público em vias de demanda alta, e que são alimentados por sistemas com maior capilaridade vindo dos bairros”, explica. Em outras palavras, a chamada alimentação de passageiros é feita tanto por ônibus convencionais, quanto por bicicletas e sistemas de baixa capacidade. “A bicicleta”, diz, “faria facilmente um trajeto de três a cinco quilômetros até a estação do metrô ou ônibus”.

Nos países desenvolvidos, a micromobilidade tem registrado grandes avanços não apenas por ser uma opção mais sustentável, mas por gerar novos negócios. As oportunidades de expansão apenas nos Estados Unidos indicam um mercado com valor entre US$ 200 bilhões e US$ 300 bilhões até 2030, segundo o relatório CB Insights: Micromobility Revolution. Em termos globais, os investidores já colocaram mais de US$ 5,7 bilhões em startups de micromobilidade desde 2015.

Dentro dessa tendência ganham força os sistemas de compartilhamento de patinetes e bicicletas. Dados de 2019 da plataforma Micromobilidade Brasil indicam que o país possui 53 sistemas de micromobilidade compartilhada, em 26 diferentes cidades. Desse total, 40% consistem em bicicletas com estações fixas, 28% são de bicicletas sem estação e 32% se referem a sistemas de patinetes. E esses últimos, inclusive, geraram muito barulho no Brasil.

Patinetes: euforia inicial e crise

Como tudo que é novidade, a chance de provocar um ‘hype’ é sempre grande. Quando os patinetes compartilhados chegaram ao Brasil em 2019, eles viraram febre em algumas grandes cidades. Um rápido passeio por vias movimentadas de São Paulo confirmava isso.

As expectativas para esse mercado eram altas: a startup norte-americana Bird, fundada em 2017 e a primeira a introduzir os patinetes nos EUA (e atualmente, presente em mais de uma centena de cidades pelo planeta), recebeu sucessivos aportes milionários que a ajudaram a atingir o status de unicórnio mais rápido do que qualquer outra startup – só em seu primeiro ano de operações, seu valor era calculado em impressionantes U$S 2 bilhões.

No Brasil, duas das principais marcas que iniciaram as operações em 2019 foram a Lime, que atua em mais de cem cidades do mundo, e a Grow, que se consolidou pela América Latina. Porém, por aqui, os patinetes esbarraram em um problema crucial: a falta de regulamentação.

Em São Paulo, por exemplo, chegou-se a decretar a obrigatoriedade no uso de capacetes, e tanto na capital paulista quanto no Rio de Janeiro, após muitas discussões, fixou-se a velocidade máxima de 20km/h e o uso recomendável, mas não obrigatório, de capacetes.

Após esses percalços, a euforia dos patinetes no Brasil baixou e esse mercado custa a encontrar um modelo de negócios: a Lime desistiu das operações no país após seis meses, ensaiando apenas um retorno tímido às operações em julho, no Rio de Janeiro; a Grow, por sua vez, deixou de atuar em 14 cidades do país, concentrando seus patinetes elétricos apenas em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba.

Além disso, no começo de 2020, a Uber anunciou que iria, gradativamente, começar a inserir patinetes com sua marca no Brasil, chegando a iniciar as operações em Santos, no litoral de São Paulo. Posteriormente, a empresa obteve permissão da prefeitura paulistana e começou, também, a operar na capital paulista. No entanto, com a pandemia do coronavírus, a Uber desistiu, em julho, de operar com compartilhamento de patinetes no país.

Bicicletas e compartilhamento: o case da Tembici

Diferentemente dos patinetes, o compartilhamento de bicicletas já se encontra em um processo consolidado no Brasil. E um dos cases de sucesso é o da Tembici, que trouxe para seu DNA a inovação presente nos ambientes universitários: a startup nasceu como embrião do projeto de conclusão de curso de seu cofundador e atual COO, Maurício Villar.

Criada em 2009, a Tembici “conectava a universidade à estação de metrô Butantã e, com 16 bicicletas, chegava a realizar 250 viagens por dia”, segundo Villar. Dois anos mais tarde, ele se tornou sócio do empreendedor Tomás Martins, e a partir de então a Tembici teve oportunidade de tocar inúmeras iniciativas, como bicicletários públicos e propostas de bicicletas compartilhadas em locais privados. “Foi então que, em 2017, tivemos a oportunidade de começar a operar os principais projetos de bicicletas compartilhadas do Brasil”.

A Tembici recebeu aportes e conseguiu cruzar as fronteiras, literalmente, iniciando operações no Chile e na Argentina. Nos dois últimos anos, a startup viu a utilização de seus sistemas aumentar em dez vezes. “Hoje, somos a empresa líder em tecnologia para micromobilidade na América Latina e, no ano passado, nossas bicicletas atingiram a marca de mais de 2,3 milhões de viagens por mês”.

Em relação à sempre desafiadora questão do modelo de negócios, Maurício Villar diz que a Tembici possui três as fontes de receita principal: subsídios das próprias cidades, recursos dos usuários e grandes patrocinadores – é o caso do banco Itaú, cujas bicicletas laranjas ficaram nacionalmente famosas, e atualmente, o iFood.

Pandemia e o futuro da micromobilidade

Com a pandemia da Covid-19, o uso das bicicletas se consolidou como questão de preocupação para a saúde pública, e seu uso foi explicitamente recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Durante uma mesa redonda promovida pelo Cities Today Institute, em junho, vários representantes da área de transportes no Reino Unido e nos Estados Unido concordaram que a pandemia destacou como os serviços de micromobilidade, como scooters alugadas e bicicletas compartilhadas, são agora uma parte crucial do mix de transporte em muitas cidades e, portanto, precisam de melhor suporte governamental.

“No geral, parece que os líderes dos departamentos de transporte terão mais interesse em trabalhar com fornecedores de micromobilidade”, afirmou Stephen Zoegall, Líder Global de Cidades e Infraestrutura da Accenture. “Vemos uma oportunidade para mais parcerias público-privadas de mobilidade”.

Os indicadores mostram o interesse crescente por bicicletas como modal. Na China, quando começou o processo de reabertura após a quarentena, no mês de maio, Pequim registrou um aumento de 150% em serviços de bike share, de acordo com a ITDP. Em Londres, a autoridade de transporte projetou que o uso de bicicletas vai crescer dez vezes.

A própria Tembici tem indicadores expressivos em plena pandemia (ou por causa dela). “Em São Paulo, no comparativo entre março e setembro, registramos 24% de aumento na média de viagens e 78% de aumento na média semanal de usuários que pedalaram”, cita Maurício Villar. “No Rio de Janeiro, nesse mesmo período, identificamos 56% de aumento na média de viagens e 173% de aumento na média semanal de usuários, e em Pernambuco, num comparativo entre o segundo e o terceiro trimestre, percebemos um aumento de mais de 600% no número de viagens”.

A Tembici recebeu em junho um aporte de US$ 47 milhões, que será utilizado para desenvolvimento tecnológico, ampliação da frota e implementação de bikes elétricas – que já começaram a operar no Rio de Janeiro em setembro. Os veículos elétricos, inclusive, são recomendados pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, que indica que veículos elétricos tornam a micromobilidade mais atrativa para quem geralmente não se locomove por bicicletas, além de possibilitar um aumento na distância média percorrida.

Vale ressaltar que esse aumento de adeptos da micromobilidade precisa vir acompanhado de uma infraestrutura urbana que atenda a esses usuários. “Com a pandemia, vimos muitas cidades abraçarem com mais força essa agenda da mobilidade ativa, mesmo aqui na América Latina, como ocorreu em Quito, Lima, Buenos Aires, Cidade do México e Bogotá”, reforça a especialista do ITDP, Clarisse Linke, “mas para isso, são necessárias medidas estruturais para garantir espaço e segurança dos usuários”.

Clarisse aponta que essa infraestrutura de qualidade deve decidir se será uma ciclovia, que consiste, de fato, em uma via de segregação física, ou se será uma ciclofaixa, com pintura e alguns tachões ou sinalização vertical. “É preciso, ainda, ter pavimento liso, largura, espaço para estacionamentos – com uma infraestrutura de apoio como bicicletários fechados, por exemplo – e investir em um redesenho das intercessões, locais onde ocorre o maior número de colisões nas cidades”, conclui a diretora do ITDP.

São inúmeras questões que envolvem uma forte presença de políticas públicas, mas considerando as suas experiências e o contexto atual, o COO e cofundador da Tembici Maurício Villar é otimista. “Existe um movimento importante entre poder público, iniciativa privada e sociedade civil para que as cidades sejam, de fato, cada vez mais inteligentes e conectadas, e possuam uma estrutura e segurança adequadas”, diz. “Cada vez mais, as pessoas poderão ter acesso e fazer uso das bicicletas como meio de transporte”.