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Como ser competitivo em uma economia data-driven?

Estudo da Data Privacy Brasil analisa as dificuldades dos reguladores para aferir concentração de mercado em operações de M&A centradas em dados e sugere mudanças

Por Cristina De Luca 12/05/2021

Manter a competição de mercado em um mundo orientado a dados é um desafio para ontem. A natureza competitiva dos dados pessoais e como eles podem ser usados para criar barreiras e excluir concorrentes preocupa por abrir brechas para grandes monopólios na economia digital. Se não conseguirmos estabelecer critérios claros para análises concorrenciais, corremos o risco de perpetuar a concentração de poder nas mãos de poucas gigantes, como as Big Techs, que tiveram crescimento recorde em 2020.

Está claro que autoridades concorrenciais, como o CADE, assim como as leis antitruste do Brasil e de outros países não estão preparadas, por exemplo, para lidar com operações de fusões e aquisições (M&A) motivadas pelo interesse nos dados das empresas absorvidas. E esse despreparo está muito relacionado à falta de instrumentos adequados à análise de concentração de mercado e poder econômico, como revela o mais recente estudo da Associação Data Privacy Brasil,  “Análise multijurisdicional de aquisições centradas em dados”, publicado esta semana.

“São análises ainda muito centradas em preço”, explica Rafael Zanatta, diretor executivo da Associação Data Privacy Brasil. E dado é um elemento não preço, mas que tem valor importante, embora ninguém saiba especificar exatamente qual. O que é um problema.

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É muito difícil avaliar a possibilidade de concentração de poder econômico quando não se consegue mensurar o real valor dos dados. Razão pela qual urge a necessidade de criação de novos instrumentos para regulação concorrencial na economia digital.

“Como, provavelmente, aquisições centradas em dados vão aumentar, uma vez que é um interesse econômico do big data potencializar as possibilidades de cruzamentos de dados, as autoridades concorrenciais vão precisar incluir outros elementos nas análises de concentração do poder econômico, que não os tradicionais”, diz Zanatta.

Nesse ponto, a avaliação do CADE sobre a aquisição da Fitbit pelo Google, por exemplo, pode ser considerada emblemática, ressalta ele.

Para quem não lembra, no ano passado o CADE foi instado pelo IDEC a analisar se as possibilidades de tratamento de dados por parte do Google não poderiam levar à deterioração da qualidade do serviço da Fitbit e, consequentemente, mudar o cenário concorrencial, ao reforçar a posição dominante do Google no mercado de publicidade online, por exemplo, e ampliar sua participação em mercados adjacentes ligados à área de saúde.

“Uma vez que os usuários da empresa adquirida tinham um conjunto de expectativas de como os seus dados seriam tratados, a autoridade concorrencial vai ter que analisar a possibilidade de uma mudança radical do modelo de negócio. Se quem comprou não vai usar os dados para outras finalidades. Se proteção de dados pessoais e privacidade configuram critérios de qualidade. Acho que esse é um debate que vamos ver mais daqui para frente”, diz Zanatta.

É difícil quantificar os impactos ao mercado de uma potencial degradação de políticas de privacidade, em especial porque não é possível antecipar como e quando ocorrerão as mudanças subjetivas para os  usuários. Há também uma limitação na análise de possíveis efeitos anticompetitivos, quando as autoridades concorrenciais costumam prestar atenção somente ao lado que envolve desembolso financeiro.

No mundo, o negócio entre Google e Fitbit é considerada a primeira aquisição centrada em dados em mercados digitais aprovada com restrições, como limitações ao uso de dados pessoais no mercado de publicidade online, mas com expressa permissão ao Google para utilização das informações dos usuários no mercado de healthtech. Portanto, possivelmente um remédio ainda sem muita eficácia.

A partir da análise de casos como este, do Google-Fitbit, o estudo aponta “dez mitos” no debate de direito concorrencial e dados:

1 – Os propósitos das leis antitruste e de proteção de dados são completamente diferentes;

2 – As ferramentas utilizadas por autoridades concorrenciais atualmente resolvem todas as preocupações envolvendo Big Data;

3 – Forças de mercado por si só resolverão problemas de privacidade;

4 – Mercados online baseados em dados não estão sujeitos a efeitos de rede nocivos;

5 – Mercados online baseados em dados possuem baixas barreiras à entrada;

6 – Dados pessoais possuem pouca importância competitiva porque são facilmente disponíveis e representam baixos custos;

7 – Empresas dominantes não têm capacidade de restringir o acesso a informações relevantes por parte de concorrentes menores;

8 – Autoridades concorrenciais não precisam preocupar-se com mercados baseados em dados porque a concorrência sempre advém de lugares inusitados;

9 – Autoridades concorrenciais não precisam preocupar-se com mercados baseados em dados porque os usuários são beneficiados com serviços gratuitos;

10 – Usuários de produtos e serviços gratuitos não possuem uma expectativa razoável de privacidade.

Então, o que os formuladores de políticas devem fazer para lidar com a influência crescente das Big Techs e construir uma economia digital igualitária? Está aí uma pergunta difícil de responder.

De acordo com o estudo, a análise de um ato de concentração, sob a perspectiva das autoridades concorrenciais, é um exercício de futurologia sujeito a equívocos metodológicos e modificações substanciais das condições de mercado, em especial no que tange ao setor de tecnologia.

Justamente por isso, aquisições de algumas empresas no mercado de tecnologia, particularmente aquelas ainda em fase de maturação, com receitas baixas ou nulas, devem ser analisadas detidamente. A ausência de receitas, por si só, não pode servir de subterfúgio para escapar dos sistemas de controle prévio.

No Brasil, o CADE realiza análises concorrenciais considerando três variáveis: faturamento bruto das partes, no Brasil, no ano anterior ao do ato de concentração; tipo de operação a ser realizada; e a existência de efeitos potenciais ou reais no Brasil.

Portanto, à luz dos critérios vigentes, é perfeitamente possível adquirir targets com atividades e usuários no Brasil sem levar a operação ao conhecimento do CADE. Parece ter sido esse o caso de todas as operações analisadas no estudo.

Uma das descobertas do estudo é a falta de diálogo e cooperação entre as autoridades de análise concorrencial e as autoridades de proteção de dados durante as análises de concentração. Outra, é a necessidade do aumento engajamento das ONGs nesse debate. Elas são as que mais têm contestado, de forma consistente, a insuficiência dos critérios atuais para análise concorrencial. Mas ainda aatuam de forma tímida, especialmente no Brasil.

Por isso o relatório propõe mudanças nos procedimentos de investigação do CADE para dar conta da dimensão não preço dos dados e até estimular uma participação da sociedade civil nesse debate. Entre elas:

1 – Adoção de um novo critério de notificação de atos de concentração;

2 – A criação de um portal consolidando informações relevantes dos atos de concentração em tramitação, além de outras questões processuais e procedimentais;

3 – A criação de uma Coordenação-Geral de Análise Antitruste (“CGAA”) especializada no setor de tecnologia;

4 – A elaboração de estudos específicos pelo Departamento de Estudos Econômicos;

5 – Cooperação técnica com a ANPD.

Por que isso importa? Para pessoas físicas, porque a crescente capacidade das gigantes da tecnologia de reunir e analisar dados sobre todos os aspectos de nossas vidas, escolhas e atitudes, não só coloca em risco a nossa privacidade, como desafia a nossa própria autonomia. A publicidade direcionada não responde apenas às necessidades e desejos do consumidor. Ele molda nossa compreensão de nós mesmos, de nossas comunidades e do mundo.

Já para pessoas jurídicas, porque as grandes empresas de tecnologia ganham valor com ativos intangíveis, como dados, algoritmos e propriedade intelectual, em vez de apenas ativos tangíveis, como trabalho físico ou bens e serviços. E quanto mais ganham, mais avançam sobre diferentes segmentos econômicos. Vale lembrar que movimentos de M&A são esperados em um cenário de Open Finance no Brasil.

Há muito jogo. Será que estamos preparados, como país, para esse debate?

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