Há quinze anos, o engenheiro civil Felipe Bittencourt fundou, juntamente com um grupo de amigos, a WayCarbon, hoje uma B-Corp referência internacional em inventários de emissões, avaliação e gestão de gestão de risco climático.
Através de uma combinação de capital próprio, recursos subvencionados e das receitas de contratos com clientes que confiaram na consultoria e, posteriormente, em seus produtos, mesmo antes de sequer uma linha de código tivesse sido escrita, a WayCarbon atravessou o colapso do mercado de carbono, em 2013, e se preparou, com muito “learning” e muito “doing”, para aproveitar o atual momento.
Com investimentos contínuos em P&D, a empresa decidiu atrelar a tecnologia aos desafios de mudança do clima. Seus softwares, comercializados como serviços (SaaS), fornecem tecnologia para Gestão da Sustentabilidade, Responsabilidade Social e Compliance (CLIMAS) para Modelagem e Quantificação do Impacto e Risco das Mudanças Climáticas (MOVE) e para Gestão de Processos de Licenciamento Ambiental (LICENTIA). Além disso, oferece um programa de compensação de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Amigo do Clima).
No último ano, tendências como a inserção do ESG na avaliação de empresas pelo setor financeiro e a adoção de metas de redução dos GEE (Gases do Efeito Estufa), em especial o Net Zero, levaram a scaleup mineira a quadruplicar o faturamento e triplicar o número de funcionários.
Atualmente, a companhia lidera, entre outros projetos para os setores público e privado, o Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas de Salvador (PMAMC), que reduzirá a zero a pegada de carbono da capital baiana, além de integrar o Fórum Amazônia + 21.
A conversa com Felipe, hoje CEO da WayCarbon, é sobre persistência e foco ao empreender, duas marcas registradas da companhia, que hoje conta com mais de 400 clientes e mais de 800 projetos entregues em toda a América Latina.
“Você ter a coragem de pegar algo e dar a sua cara para fazer acontecer do jeito que você acha que precisa ser feito. A Waycarbon não inventou os créditos de carbono ou foi a primeira consultoria climática. O que fizemos foi aproveitar uma oportunidade que fazia muito sentido para nós, mas não para a maioria das pessoas — e trabalhar para tirar essa oportunidade do papel.
A disrupção está aí, na coragem para fazer acontecer.
O começo foi muito desafiador. Tivemos que abrir mão de muitas coisas, inclusive de bons empregos corporativos para criar algo no qual a gente acreditasse. Isso foi a base de tudo: o quanto a gente acreditava no nosso propósito. O quanto já fazia sentido para a gente essa agenda climática. Essa necessidade de mudar o sistema econômico do mundo para resolver um complexo problema ambiental global.
O que deu o clique? Bom, eu já fazia mestrado na área de carbono e participava de um grupo de estudos interessado em se aprofundar no tema mudanças climáticas. Na época havia pouca bibliografia a respeito. A gente meio que leu tudo o que tinha: a Convenção da ONU, os projetos de crédito de carbono, as metodologias existentes…
Quando as fontes esgotaram, decidimos escrever uma metodologia para redução de emissão, para manter o grupo ativo. Na hora que ficou pronta, a gente não sabia muito o que fazer com ela. Então, decidimos submetê-la à ONU, onde ela foi aprovada e disponibilizada para qualquer empresa que quisesse fazer uso para gerar crédito de carbono. Aí deu o clique.
Para ser franco, não fomos nem nós que despertamos para a oportunidade diante da gente. Acho que ainda éramos muito jovens para perceber o que a gente tinha feito.
O clique foi do meu orientador, o professor Gilberto Caldeira, que diante do nosso feito sugeriu que a gente criasse uma empresa. Investimos o capital que tínhamos para comprar computadores, nos instalamos na garagem da casa dos meus avós e começamos a buscar clientes.
O primeiro projeto que a gente conseguiu nem foi de crédito de carbono, de inventário de efeito estufa, que na época a gente não fazia ideia do que era. Tivemos que estudar muito para entregar o projeto. E o que a gente aprendeu é hoje a base de um dos nossos softwares, que permite às empresas saber onde e quanto estão emitindo em termos de gases de efeito estufa.
Empreender, entre 2005 e 2006, era uma aventura. Não havíamos sido expostos a todo o repertório de conceitos e ferramentas, rede de apoio e aceleração dos quais hoje gozam as startups.
Empreender, sendo jovem e sem experiência, e em um tema cuja incompreensão e ceticismo eram a norma, foi ainda mais desafiador.
No início fizemos muitos cursos. Procuramos compensar a falta de experiência de anos vividos com mestrados e doutorados no tema, para ganhar a confiança do mercado. Essencialmente, éramos uma empresa de consultoria. Oferecíamos estudos e avaliações estratégicas relacionadas à mudança do clima. As experiências iniciais produziram o necessário para avançar. Conseguimos contratos cada vez maiores e desafiadores. E começamos a chamar a atenção de mais empresas.
Mas nossa grande escola de gestão, o nosso MBA, foi a fusão com a nossa maior concorrente em 2010. Inicialmente, ficamos com 15% da nova empresa, a WayCarbon, com a promessa de aumento de participação societária a partir do desempenho dos projetos de carbono que desenvolvíamos para os clientes. Em pouco tempo, aumentamos a participação para 30%. No fim de 2012, exercemos a opção de comprar mais 20%. Aumentamos para 50%.
Aí o mercado de carbono colapsou, em 2013. A essa altura a gente queria investir mais em tecnologia. Era claro para nós que precisávamos empregar tecnologias digitais para impulsionar a transição de nossos clientes.
Os nossos parceiros não tinham a mesma visão. A solução foi comprar os outros 50% para pagar em 12 vezes, e continuar apostando no nosso bom e velho “learning by doing” para nos lançamos na jornada tecnológica, e tendo que fazer dinheiro.
Aí demos um tiro certeiro, que foi investir em duas tecnologias bem disruptivas: o software CLIMAS, para gestão ESG, cujos módulos de gestão de emissões de gases de efeito estufa, resíduos, água e energia já são utilizados por 60 corporações em mais de 18 países; e o investimento no MOVE, inicialmente para suportar o trabalho de consultoria, mas que decidimos transformar em uma plataforma SaaS para analisar o risco climático das empresas e estimar os impactos físicos e financeiros das mudanças climáticas para os seus negócios.
O MOVE já foi utilizado na composição dos Planos Climáticos das cidades brasileiras de Belo Horizonte, Betim, Curitiba, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Bernardo do Campo, São Paulo, Sorocaba, além de Cartago e Manizales, na Colômbia.
Agora, o MOVE estará disponível para empresas de energia, finanças, varejo, saúde… Entendemos que era fundamental mover a agenda de um campo operacional, puramente analítico, para um campo estratégico que pudesse maximizar o valor da agenda ESG pela aplicação da nossa inteligência, dados e softwares. A ideia do software é permitir que as empresas trabalhem com bases unificadas de informação e possam identificar lacunas e agir.
O principal fio condutor das nossas análises é a identificação dos impactos diretos e indiretos nos aspectos financeiros, produtivos, ambientais e sociais dos nossos clientes. Cobrimos desde a compreensão desses impactos ao estabelecimento de metas voluntárias ou metas baseadas em ciência (Science Based Targets – SBT), definindo métricas de avaliação de impacto que podem ser usadas para controles internos ou para divulgações públicas, tal qual a TCFD (Task Force on Climate-related Financial Disclosures).
Para desenvolver esses softwares, assim como um terceiro, chamado Amigo do Clima, de compensação de emissões de gases de efeito estufa (GEE), a gente foi para o BH-TEC, o Parque Tecnológico de Belo Horizonte, e pegou dinheiro a fundo perdido para inovação nos programas de fomento da Fapemig, da Finep e do CNPq. Foi um momento de imersão na cultura de tecnologia.
E foi outro aprendizado importante. Éramos uma empresa que entendia muito de clima. Então, para ter expertise de tecnologia, fizemos uma joint venture com uma empresa do BH-TEC. No meio do caminho, a empresa foi investida, e os VCs exigiram o fim das joint ventures que ela mantinha e mais foco no negócio. De uma hora para outra nos vimos com metade dos recursos captados a fundo perdido. Tivemos que colocar dinheiro do próprio bolso para seguir com os desenvolvimentos. E eu ainda consegui antecipar recursos de oito clientes interessados no software, antes de ter sequer uma linha de código escrita. Vendi os programas e pedi um tempo para entregar.
A gente perdeu um ano e meio aí. Mas valeu como aprendizado. Foi um risco grande. A empresa estava com 10 anos, e comecei a sentir que o mercado estava mudando. Muitas empresas que visitávamos para apresentar os nossos produtos e serviços já tinham ouvido falar da gente. Tínhamos um histórico de sucesso, o mercado falava bem a nosso respeito. Sempre fizemos um trabalho sério. Nunca deixamos nenhum cliente na mão, mesmo quando os trabalhos eram mal vendidos e acabavam dando prejuízo, por um motivo ou outro. Então, era hora de ousar.
No final, o revés foi bom porque nos mostrou a importância de internalizar a tecnologia. Hoje os produtos são 100% nossos e todo o desenvolvimento é feito dentro de casa.
Aí, com a pandemia em 2020, veio mais um frio na barriga. Passamos três meses sem vender nada. Foi um momento de muito estresse. De olhar para dentro, cortar custos, cortar pessoas — o que dói demais. A nossa equipe é muito qualificada. A gente investe na formação das pessoas, principalmente em relação à temática ambiental.
Mais uma vez, fizemos apostas certeiras nesse período. Contratamos a primeira diretora. Primeira mulher e não integrante do grupo de fundação da empresa. Investimos em uma nova área de consultoria de finanças sustentáveis. Colocamos mais dinheiro para acelerar o desenvolvimento do MOVE e mudamos o nosso discurso para um discurso mais estratégico para empresas.
Somando isso tudo ao boom ESG, a gente acabou dando uma decolada boa mais no fim de 2020.
Nos últimos 12 meses, praticamente triplicamos a nossa equipe, cada vez mais multidisciplinar. Recontratamos algumas pessoas que a gente tinha desligado. Crescemos as vendas em 380%. Quadruplicamos o faturamento. Anunciamos a abertura de vendas diretas e via parcerias para empresas na América Latina e nos EUA interessadas no CLIMAS. Nos consolidamos como uma empresa direcionada para nosso propósito de catalisar a transição para a economia de baixo carbono, missão que pressupõe impacto e escala.
Com um reposicionamento de produtos e o fortalecimento da equipe técnica, iniciado no ano passado, passamos a atuar também no apoio a tomadas de decisões complexas e na implementação de agendas que hoje são fundamentais aos negócios como o financiamento verde e a integração ESG.
Hoje, o faturamento da empresa vem 50% de consultoria, 25% de software e 25% créditos de carbono.
Acredito que a mudança do clima é um dos principais desafios da humanidade. Precisamos de compromissos públicos e privados crescentes e de longo prazo embasados em um novo modelo econômico de baixo impacto ambiental. Estou certo de que esse é o caminho e que essa transição para uma economia de baixo carbono já está acontecendo.
Sinto isso no trato com os nossos clientes, com os nossos parceiros e a própria equipe interna. Até dois anos atrás, o tema mudança do clima parava no gerente de sustentabilidade. Às vezes, em um diretor. Agora, toda semana tem CEO ou membros do conselho de administração querendo entender sobre mudança do clima. Querendo fazer acontecer porque eles estão sendo cobrados pelos investidores. O discurso mudou para o status de criação de valor para as empresas.
Internamente, desde o início, o trabalho na WayCarbon nunca foi só pelo dinheiro. O interesse em trabalhar com a gente vem muito pelo propósito. Pelo desejo de contribuir com a sociedade. A gente acredita que sustentabilidade e tecnologia são pilares do futuro. É um movimento sem volta. Vai acontecer, com a WayCarbon ou sem a WayCarbon. A gente existe só para fazer acontecer mais rápido.
Mas inventário e a quantificação do impacto das emissões são grandes desafios.
Para que as empresas alcancem êxito em suas iniciativas, é fundamental o estabelecimento de parâmetros consistentes, bem dimensionados e monitorados com regularidade. Sem métricas corretas, é impossível uma empresa saber se está acertando ou mesmo estabelecer uma estratégia clara de redução da pegada de carbono.
Aos poucos, o mundo vai avançando em relação a isso. Por exemplo, já existe uma ISO e uma norma do IPCC para inventário de gases de efeito estufa. Então, existe um parâmetro. Um padrão, assim como existe um padrão para créditos de carbono.
O que ainda falta é avançar nos padrões para os compromissos. As empresas vivem anunciando metas de redução de emissões. Como saber se de fato foram cumpridas? Como saber que essas metas conversam com a Ciência e o que ela diz que é preciso ser feito?
Quando uma empresa diz que vai ser net zero em tal data, o que ela realmente precisa fazer? Certamente não só comprar determinados créditos de carbono. Ela vai precisar reduzir sua pegada? Quanto ela vai precisar reduzir para ser considerada net zero? Isso ainda não está claro.
O mundo ainda não sabe o que será preciso para reduzir a mudança do clima. Tem muito investimento feito em pesquisa para chegar às respostas que estamos buscando. Muito P&D para se criar novas soluções climáticas. Vamos ver muita gente trabalhando nessas frentes nas próximas décadas, para que novas ideias surjam e inovações aconteçam.
O que já se sabe é que mesmo pegando todas as metas dos países, as chamadas NDCs no Acordo de Paris, e considerar que todos as cumprirão integralmente, ainda assim a gente está longe de limitar o aquecimento global no que precisa ser limitado.
Uma das grandes expectativas em relação à COP26, por exemplo, é que os países revisem as suas metas e assumam metas mais audaciosas. Não creio que o Brasil vá fazer isso. Até porque muito da meta do país é relacionada à redução do desmatamento.
Tem um ponto do Acordo de Paris que está em aberto há muito tempo, referente ao seu artigo 6, que trata da negociação dos créditos de carbono no mercado internacional. O grande debate é: se um país vende créditos para o outro, essa venda tem que ser descontada da meta do país que vendeu?
Enfim, tem muita coisa que pode ser decidida na COP26.
Felizmente, no Brasil, a gente já sente um esforço maior em Brasília para tirar a mudança climática do debate mais ideológico e político e passar a encará-lo como um tema importante para o país.
Espero que o Brasil avance porque muito da agenda ambiental e climática anda mesmo sem o governo andar.
Mais de 60 países já têm o seu próprio mercado de créditos de carbono. O Brasil ainda não. Estamos atrás nessa agenda. Há um projeto de lei no Congresso tratando disso. Temos um diferencial ambiental que pode se traduzir em diferencial competitivo de mercado para as nossas empresas nessa agenda climática. São luzes no fim do túnel e me parece que a agenda, como um todo, está se fortalecendo.
O mercado de carbono tem o potencial de destravar oportunidades financeiras para planos de recuperação econômica e aceleração do crescimento sustentável da economia brasileira.
O futuro? No nosso roadmap para 2022 está a inclusão da Inteligência Artificial nos nossos produtos para lidar com questões referentes à inconsistência de dados. Já temos uma API para puxar automaticamente uma quantidade grande de dados dos sistemas das empresas, reduzindo erros comuns na entrada manual desses dados. Com a IA a gente dá um passo a mais em análise e consistência de dados.
Investimento? Não estamos pensando nisso agora. A gente foi muito conservador nesse ponto. Sempre nos preocupamos em ter fluxo de caixa e um fundo de reserva.
É natural que, com o tema ganhando força, a gente vá precisar de capital para continuar competitivos. Mas até agora, a gente tem conseguido buscar soluções para financiar as operações sem recorrer a bancos ou VCs. Tivemos uma oportunidade de receber investimento e preferimos não ir por esse caminho. Mais para frente talvez seja uma necessidade. O que eu vislumbro são parcerias estratégicas para a empresa.
Acabamos de anunciar a cocriação do primeiro Fundo de Investimento em Participações, em parceria com a Vitreo e a ForFuturing. Dedicado a créditos de carbono do Brasil, o FIP Carbono arrecadou R$ 51 milhões entre os cotistas. O fundo vai montar um portfólio composto por créditos originários de projetos florestais, energia, biometano e substituição de combustível, verticais com maior potencial de geração desses ativos no nosso país, com o objetivo de catalisar o processo de descarbonização da nossa economia e somar com companhias que assumiram compromissos para reduzir suas emissões ou que tenham como objetivo se tornarem neutras em emissões de carbono.
O objetivo é fomentar ainda mais essa modalidade de investimentos, com especial atenção ao nosso país – cujo potencial de geração receita de até US$ 100 bilhões até 2030.
Iniciativas como a do FIP Carbono devem ser consideradas centrais para a aceleração do desenvolvimento do mercado de carbono no Brasil, contribuindo para ampliação de escala, liquidez e eficiência na formação de preços desses créditos.
Vejo com muito bons olhos outras empresas entrando nesse segmento de mudanças climáticas. Isso mostra o fortalecimento do mercado. Fico feliz de ver esse momento chegando.
É um momento muito bom para se acreditar nesse mercado que, pelo problema que tenta resolver, necessariamente vai crescer. Independente de economia. Independente de governo. Mesmo com todos os desafios.
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