O mercado brasileiro de carros usados está movimentado. Somente no final de julho ocorreram dois grandes anúncios: o lançamento oficial do unicórnio mexicano Kavak no Brasil e a compra da Volanty pela Creditas. Ambas as empresas querem garantir uma fatia desse mercado que comercializou mais de 11 milhões de automóveis em 2020. As apostas são um reflexo do aquecimento do setor, que está em alta desde o ano passado e deve continuar com uma demanda alta.
A pandemia é um grande impulsionador desse mercado de usados. O coronavírus fez com que as pessoas retomassem o desejo de possuir um carro para fugir do transporte público e reduziu a disponibilidade de insumos — passamos por uma crise de semicondutores. O número de veículos novos ficou ainda mais escasso. O resultado foi o salto no preço dos automóveis novos, o que gerou um aumento de demanda natural pelos seminovos e usados.
“Ao longo dos últimos meses, o que a gente observa é que está havendo o descolamento entre o crescimento da média salarial do brasileiro e o valor do veículo. Os carros estão ficando cada vez mais tecnológicos e tecnologia custa dinheiro. Ainda tem a questão dos semicondutores em falta”, explica o sócio-líder de Automotive da KPMG, Ricardo Bacellar. “Quando as pessoas voltaram a comprar carro, elas se defrontaram com preços muito altos para o brasileiro médio nos carros novos. Então, ocorreu a fuga para o seminovo e usado”.
As montadoras têm tido maior dificuldade para entregar carros, inclusive para as locadoras, que são um player importante para o mercado de usados. Com menos veículos novos, as locadoras não estão colocando automóveis mais antigos para revenda, o que reduz a quantidade de usados e seminovos disponíveis. A demanda aumentou, mas a oferta não acompanhou. O preço dos carros em revenda também está subindo. Bacellar pontua que o último mês já aponta uma estagnação na venda de usados.
“Falta de carro usado. A oferta incompatível com a procura gera um preço elevado. O mercado vai achar um novo ponto de equilíbrio, mas a tendência é que esse segmento continue prevalecendo por muito tempo”, afirma o sócio-líder de Automotive da KPMG. “Tem mais um componente importante nessa equação que são os veículos elétricos. Estamos vendo na Europa as decisões severas para parar de produzir veículos com motor a combustão, o que vai fazer com que quem quiser um carro mais barato do que os elétricos recorra ao usado. Esse é mais um motivo para acreditar que no curto e médio prazo esse mercado de usados estará muito aquecido”.
É natural que um setor aquecido atraia grandes players e, como resume Bacellar, “está virando um negócio de gente grande”. O tamanho do mercado brasileiro é atrativo para as empresas. “Temos a quinta maior população do mundo e uma carência de ter o seu próprio automóvel. Talvez se a gente tivesse o dobro de veículos usados em oferta agora, teríamos vendido o dobro e o preço não tivesse subido tanto. É um mercado com um potencial muito vigoroso”, pontua o sócio-líder de Automotive da KPMG.
O tamanho do mercado é uma das motivações para a Kavak entrar no Brasil. A empresa afirma também ter sido atraída pela quantidade de talento disponível para formar times no país e a abertura dos brasileiros a modelos de negócio disruptivos. Com atuação no país desde março, o unicórnio mexicano lançou oficialmente sua operação brasileira na última semana de julho. Antes do lançamento oficial, a startup comprou cerca de 2.500 carros e a expectativa é superar a marca de 100 mil veículos adquiridos e 50 mil carros vendidos no país até o final de 2022.
A empresa de tecnologia investe R$ 2,5 bilhões para lançar a operação no Brasil, que deve se transformar na maior da Kavak. Em abril, a startup captou US$ 485 milhões em rodada série D e passou a ser avaliada em US$ 4 bilhões apenas 4 meses após se tornar um unicórnio. Os recursos foram direcionados para a expansão internacional, inclusive para a vinda ao Brasil.
“O Brasil é o terceiro maior mercado mundial com mais de dez milhões de transações anuais de carros. Então, acreditamos que a combinação do tamanho do mercado, tamanho da oportunidade, os problemas existentes, a paixão do brasileiro pelos automóveis e a baixa penetração de carro por habitante, faz do Brasil a maior oportunidade globalmente para esse setor de usados”, afirmou Roger Laughlin, um dos fundadores da empresa e CEO da Kavak Brasil, em coletiva de imprensa.
Apontada como uma reação à chegada da Kavak no Brasil (o que é negado pela empresa), a compra da Volanty pela Creditas também sinaliza a confiança no mercado de usados. A aquisição ocorreu no começo de julho, mas só foi divulgada no balanço do segundo trimestre de 2021 da Creditas.
O Vice-Presidente de Customer Solutions da Creditas, Fabio Zveibil, explica como o M&A vai reforçar o Creditas Auto. “A gente já tinha decidido entrar nesse mercado e [a compra] faz todo sentido para o nosso ecossistema. Do nosso lado acelerava muito em termos de tecnologia e em conhecimento de mercado e para eles também acelerava pela maior escala e a agressividade que as duas empresas conseguiam colocar com a operação conjunta”.
Zveibil reconhece que o mercado está crescendo, mas afirma que a estratégia da Creditas está mais ligada à ampliação do ecossistema casa-carro-salário do que a vontade de aproveitar o superaquecimento do setor. A entrada no segmento permite que a empresa comece a interagir com os clientes ao redor do carro. Assim como a Kavak, a startup brasileira dá garantia para os carros e faz um recondicionamento completo do automóvel, antes da revenda. Esses processos aumentam a confiança do consumidor nos carros usados e seminovos.
“Quando decidimos focar em soluções ao redor do ativo, ficou muito claro que a gente tinha que participar das transações. O jeito de agregar valor de verdade era fazendo a transação de ponta a ponta. Esse controle da cadeia permite que eu tenha um serviço melhor para o cliente, mas também cuide muito melhor do veículo”, afirma Zveibil.
O modelo de negócio de ambas as empresas é bastante parecido, mas o Vice-Presidente de Customer Solutions da Creditas acredita que o mercado é grande o suficiente para as duas soluções. “Não tem problema ter os dois. Lógico que quando o mercado está apertado do jeito que está, vai ter concorrência para comprar e vender carro. Alguns clientes mais digitalizados vão comparar. Eu tenho clientes que vêm vender o carro e falam que a Kavak paga um certo valor, mas é uma porcentagem pequena”, afirma.
Para a UsadosBR, uma plataforma que faz o intermédio do processo de compra e venda de carros usados, a entrada de novos players no mercado é positiva por profissionalizar o setor. Kavak e Creditas são vistos como possíveis clientes das soluções da startup. “Essas empresas olham para esse espaço no mercado, que precisa de bom atendimento e digitalização no processo de compra e venda. Então, elas vêm para somar e fazer com que o mercado de seminovos fique cada vez maior e mais atraente para o cliente final”, afirma Menfis Augusto, CEO da companhia.
Além de funcionar como um classificado online de carros, a UsadosBR constrói um sistema de gestão voltado para lojistas de veículos usados. Em julho, a startup recebeu um aporte de R$ 5 milhões liderado pela Domo Invest. O negócio só cresceu ao longo da pandemia, na comparação do período de janeiro a maio de 2020 com os mesmos meses de 2021, o faturamento da companhia saltou 340%. Augusto acredita que o crescimento foi motivado pela digitalização do setor com a crise de saúde pública.
“A pandemia fez com que mais usuários se adequassem ao ambiente digital e a tendência é que a gente consiga facilitar cada vez mais o fluxo para o consumidor final. No final das contas, o que queremos é que exista o menor volume de obstrução possível para que o cliente consiga realizar tanto a compra quanto a venda”, pontua o CEO da UsadosBR.
Tanto a Kavak quanto a Creditas possuem lojas físicas. O cliente pode escolher em qual ou quais canais realizar a compra e venda do veículo, o que demonstra uma preocupação com a experiência do consumidor.
O Vice-Presidente de Customer Solutions da Creditas ainda acredita que os consumidores de carros gostam de ver o bem fisicamente antes de fechar a compra. “A gente está montando uma estratégia em que o cliente pode fazer do jeito que quiser. Existe uma penetração de produtos digitais, mas acreditamos que a experiência vai ter o começo da jornada no digital e uma parte física. Estamos preparados para uma jornada combinada”, relata Zveibil.
Mesmo antes da pandemia, a “KPMG Automotive Executive Survey Brazil 2019“ apontava que 93,75% dos consumidores desejavam que as montadoras oferecessem uma alternativa de venda de veículos pela Internet. Entretanto, 93,62% dos ouvidos preferiam fechar a compra presencialmente.
Apesar dos dados, Bacellar ressalta que as empresas devem oferecer as mais diversas opções de jornada para o consumidor para que todos os perfis de clientes sejam atendidos. As empresas também precisam entender que a pandemia acelerou o movimento de digitalização.
“O nosso modelo tradicional de negócio era 100% pautado no presencial e a pandemia tirou todo mundo da rua. As vendas caíram a zero. Ninguém naquele momento pensou que era possível comprar carro na internet porque não existia uma cultura. A indústria teve que correr atrás e começou a fazer o dever de casa rápido. Já começamos a ver essas iniciativas”, explica.
Apesar da digitalização, ainda existem muitas dores dos consumidores de carros usados que podem ser resolvidas e as startups querem criar soluções para acabar com esses problemas. “A experiência de compra e venda não é muito boa hoje em dia. Os jovens optam por outras formas de mobilidade por achar mais pragmático e seguro. Com a nossa proposta de valor, podemos mudar esse comportamento. No México, vemos pais comprando carros usados para filhos porque percebiam que comprar um veículo na Kavak é simples e seguro”, explica Laughlin.
Startups podem trazer uma grande contribuição para a aceleração da inovação e digitalização no setor automotivo. Para Bacellar, existe uma espécie de equilíbrio de forças: as startups não têm a mesma musculatura que as montadoras, mas possuem ondas mais fortes de evolução tecnológica.
“A startup vai alcançar inovações e colocá-las à disposição do consumidor de uma maneira muito mais veloz do que a indústria automobilística costuma fazer. Isso vai acabar gerando uma reação com as empresas tradicionais comprando companhias de tecnologia, criando soluções tecnológicas parecidas com as das startups ou fechando parceria”, prevê Bacellar.
A expectativa é que o mercado, especialmente o de carros seminovos, chegue ao equilíbrio à medida que a produção de carros novos seja retomada em níveis normais por volta do primeiro trimestre de 2022. Entretanto, novas ofertas de assinatura de veículos podem mudar a cara do setor, na visão do sócio-líder de Automotive da KPMG.
Com a assinatura (subscription) de veículos novos, o consumidor tem a sensação de estar pagando menos por desembolsar quantias menores por mês. Esse formato pode atrair potenciais compradores de seminovos para o mercado de novos. Para o futuro, a expectativa é que esse modelo de assinatura entre no segmento de usados.
“Nesse modelo, o veículo vai deixando de ser um produto comprado para ser um serviço porque é uma assinatura. Você não compra o veículo, embora as ofertas atuais desse modelo no Brasil pareçam mais um leasing do que outra coisa. A tendência é que essa oferta cresça muito”, afirma Bacellar. “Estender essa oferta para os usados pode suavizar os degraus de migração de carros porque vai trocar a burocracia da compra por uma simples renovação de assinatura”.
Até o crédito pode ser influenciado pelos novos modelos de assinatura porque a montadora vai passar a receber parcelas menores de capital por mês, mas vai continuar a entregar um ativo de alto valor.
“A mecânica do modelo econômico de venda de carro vai mudar, então você vai começar a botar dinheiro para receber depois. Por isso, as financeiras das montadoras estão ganhando uma relevância enorme. Essas empresas que operam no mercado de usados têm um braço financeiro importante”, explica Bacellar.
A assinatura pode ser uma forma de resolver o problema do descolamento dos preços dos carros novos em comparação com a renda média do brasileiro. A retirada de tecnologia não essencial dos carros, como parte do sistema de entretenimento, também é vista como uma opção para a redução dos preços dos veículos novos.
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