“Como você convence um país inteiro de que centenas de inocentes foram condenados por um crime que nunca aconteceu, e tudo por causa de um software contábil entediante?”
Foi com essa pergunta que Bryan Glick, editor-chefe da Computer Weekly, iniciou seu painel no SXSW London 2025 – “When Tech Goes Wrong: How not to be the next Post Office scandal“. A provocação abriu um relato contundente sobre o maior erro judiciário em massa da história do Reino Unido. Mais do que um problema técnico, o caso dos Correios britânicos é uma lição sobre cultura organizacional, responsabilidade, jornalismo e os riscos de confiar cegamente na tecnologia.
A marca Post Office é uma das mais antigas e respeitadas do país. Com mais de 350 anos de história, era vista como parte da identidade nacional britânica. Símbolo de confiança e estabilidade, os Correios operam a maior rede varejista do Reino Unido. Por isso, a revelação de que centenas de subgerentes haviam sido injustamente acusados de roubo causou comoção. A origem das acusações era o sistema Horizon, software contábil fornecido pela Fujitsu, que apresentava falhas e gerava déficits fictícios nos caixas das agências.
Durante anos, os trabalhadores denunciaram que havia algo errado com o sistema. Em vez de investigar, a direção dos Correios preferiu manter a narrativa de que os erros eram humanos ou intencionais. Muitos foram demitidos, processados, condenados. Alguns perderam suas casas, suas famílias, sua saúde. Alguns morreram antes de ver a justiça ser feita. Em suas palavras, Glick destacou que “a instituição preferiu proteger a reputação da tecnologia a proteger seus próprios funcionários”.
A virada começou com o jornalismo. Em 2009, a Computer Weekly publicou a primeira reportagem sobre o caso. Desde então, mais de 500 matérias foram escritas, enfrentando resistência institucional e silêncio da grande imprensa. Glick lembrou que por anos sua equipe se perguntava por que essa história não estava nas manchetes nacionais. Essa mudança só veio em janeiro de 2024, com a exibição da série Mr. Bates vs The Post Office. A repercussão pública foi imediata. Em dez dias, o então primeiro-ministro Rishi Sunak anunciou que o Parlamento aprovaria uma lei para anular mais de 900 condenações injustas.
O escândalo foi possível graças a uma conjunção de fatores. A partir dos anos 1990, mudanças legislativas passaram a presumir que dados de computadores eram confiáveis por padrão. Paralelamente, o software Horizon foi implementado com problemas de origem. Ainda assim, os gestores confiaram cegamente nos relatórios digitais e desprezaram os alertas vindos da ponta.
Glick chamou a atenção para o risco da confiança cega na tecnologia, ao dizer que “é fácil perguntar quando o computador diz não. Mas o que acontece quando a inteligência artificial diz não e ninguém sabe que pergunta fazer?” O caso dos Correios é uma advertência para empresas e instituições que enfrentam a transformação digital e a adoção de inteligência artificial.
Bryan Glick destacou cinco aprendizados fundamentais.
A primeira lição é questionar a cultura organizacional. Sistemas complexos podem reforçar viéses institucionais e silenciar vozes críticas.
A segunda é preservar a capacidade técnica dentro da organização. Quando o conhecimento sobre a tecnologia está nas mãos de terceiros, os riscos aumentam.
A terceira lição é valorizar quem está na linha de frente. São essas pessoas que representam a marca para os clientes.
A quarta é lembrar que tecnologia não resolve problemas estruturais sozinha. Automatizar processos ruins apenas acelera o fracasso.
A quinta lição é envolver todos os colaboradores na jornada digital. A transformação precisa ser compreendida, não apenas executada.
O escândalo também revela como a desinformação pode vir de fontes institucionais. Por anos, a narrativa oficial dos Correios negou qualquer falha no sistema. A negação ganhou força justamente porque partia de uma instituição respeitada. A desinformação não se limita às redes sociais. Ela pode estar embutida em comunicados oficiais, discursos técnicos e argumentos de autoridade.
No encerramento de sua fala, Glick foi direto. Se sua organização não está aprendendo com este caso, ela está em risco de repetir os mesmos erros. E agora, com a Inteligência Artificial, esses erros podem ser mais difíceis de identificar, mais rápidos de propagar e mais devastadores para as pessoas afetadas.
O futuro das instituições depende da capacidade de fazer a pergunta certa. Isso vale para jornalistas, engenheiros, líderes e usuários. Em um mundo cada vez mais automatizado, questionar o sistema não é sinal de desconfiança. É um dever ético e estratégico.
* Patricia Marins é fundadora da Oficina Consultoria, especializada em alto impacto em reputação e influência. Autora do livro “Muito além do media training – o porta-voz na era da hiperconexão”.
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