O que você faria se, ao final de 30 minutos de uma excelente entrevista, descobrisse que, por uma trapaça da tecnologia, só gravou os dois minutos finais? Pois foi literalmente isso que aconteceu na minha primeira conversa com a autora norte-americana Erin Meyer, especialista em culturas globais, professora da escola internacional de negócios INSEAD, autora do best-seller “The Culture Map“, e coautora, junto com Reed Hastings, CEO da Netflix, do livro “A regra é não ter regras“, sobre a controversa cultura corporativa da gigante do streaming.
O fato de ter concordado em fazer uma nova entrevista, abrindo espaço na sua agenda lotada, tem tudo a ver com a tremenda empatia de Erin, que foca seu trabalho no entendimento da diversidade cultural global para ajudar a criar pontes entre pessoas de diferentes países, culturas e hábitos sociais. Esse é o mote do primeiro livro dela, “The Culture Map“, que parte do princípio de que podemos identificar personalidades em grupos e países da mesma forma que identificamos nos indivíduos.
Do ponto de vista de negócios, e aí não importa se estamos falando de empresas de países diferentes que estão negociando ou de times de diferentes empresas que estão em um processo de fusão, o segredo é entender a distância que separa as duas culturas e, aí, colocar-se de forma empática no lugar da outra pessoa para estabelecer uma comunicação no formato que seja melhor recebido por ela.
Não por acaso, foi o livro “The Culture Map” e o fato de que ambos, em tempos diferentes, tinham trabalhado como voluntários do Peace Corps, que fez com que Reed Hastings entrasse em contato com Erin em meados de 2015. Na época, a companhia estava em 50 países, acelerando para o push que a levou para 190 países, com mais de 180 milhões de usuários. O livro de Erin estava na lista de leitura da liderança da Netflix e Reed propôs que ela entendesse como a cultura da companhia – desenhada por ele no famoso deck de 125 slides – funcionava.
Embora o livro sobre a Netflix esteja em evidência (lançado em setembro de 2020, entrou na lista dos melhores business books do ano do Financial Times), a conversa não está centrada apenas no modelo criado por Reed Hastings para garantir uma cultura corporativa de excelência, dirigida para a reinvenção constante do negócio. Uma cultura em que a regra é ter o mínimo possível de regras e que se pauta pela densidade de talentos, comunicação brutalmente transparente e honesta entre todos os funcionários e liberdade de ação.
O novo ambiente corporativo remoto imposto pelos hábitos pós-pandemia, a necessidade de criar culturas diversas e inclusivas nas empresas, as oportunidades de novos negócios a partir do entendimento de diferentes públicos e a globalização também foram assunto na entrevista, trazidos especialmente por conta das ideias do primeiro livro, que têm servido de referência para empresas de todos os tipos no exercício da sua reinvenção.
Disrupção é…
“Quando escrevemos o livro, não havia o coronavírus. Portanto, naquele momento, todas as empresas tinham uma ideia de que era importante ser mais flexível nas suas estruturas. O mundo está mudando mais rapidamente e as empresas que querem existir por décadas e não apenas anos precisam realmente aprender como se reinventar à medida que as coisas mudam ao seu redor. E isso, é claro, foi bastante irônico, porque terminamos de escrever o livro no ano passado em fevereiro. Eu voltei de férias no final de fevereiro com meus filhos e o livro finalmente estava terminado. Duas semanas depois veio o lockdown por causa do coronavírus.
O livro deveria ter saído em maio, e o lançamento foi mudado para o segundo semestre por causa da pandemia. Então, o que aconteceu? O mundo mudou drasticamente e, de repente, qualquer empresa que não tinha percebido que precisava ser mais flexível, que não percebeu que tinha que ser mais aberta à criação de inovação e adaptabilidade na organização, antes da pandemia, acordou naquele momento.
“Agora elas sabem disso, porque o coronavírus mostrou à maioria das empresas que se não somos flexíveis, não somos bons. Não vamos sobreviver ao ambiente em mudança”.
Na semana passada, eu participei de uma conferência com representantes de uma empresa aérea e eles estavam muito interessados no modelo da Netflix, porque na sua área de negócios têm sido muito mais flexíveis que outras companhias aéreas comerciais. E é por isso que eles estavam interessados em aprender com a Netflix. E eu pensei: veja, até mesmo companhias aéreas que dependem de questões críticas de segurança, que são historicamente cheias de regras e processos, perceberam que não podem se fiar apenas nisso porque não serão flexíveis quando estas enormes mudanças ambientais acontecerem e nos impactarem de todas as formas. Por isso, de certa forma, o livro é perfeito para a era do coronavírus, embora quando o escrevemos não sabíamos sobre ele.
Uma coisa interessante sobre o Reed [Hastings] como CEO é que ele é bastante discreto e bastante humilde em sua abordagem. E quando ele era um CEO mais jovem, achou que talvez não tivesse a personalidade para ser um grande CEO. Ele não tinha uma grande personalidade carismática como as que via em muitos dos exemplos de liderança ao seu redor.
Mas o que Reed aprendeu, ao ler [trabalhos de] pessoas como Jim Collins, por exemplo, foi que todos os tipos de pessoas podem ser excelentes CEOs. E ele se vê como um jardineiro.
Veja, o trabalho de um jardineiro é garantir que a terra seja fértil para o sucesso da plantação. Então seu trabalho é estar lá, medindo o ar, testando o solo, vendo se a água é suficiente, se as flores estão crescendo. “Oh, essa flor, não está recebendo feedback suficiente. E esta flor aqui esqueceu de se livrar do funcionário medíocre“. O trabalho do líder é estar ali para medir continuamente o solo e a atmosfera, ou o ecossistema, como ele diz. Para garantir que seus funcionários possam crescer e prosperar.
E é isso que ele passa seu tempo fazendo. No livro falamos que ele passa uma enormidade de tempo em reuniões individuais com os funcionários. A razão pela qual ele faz isso não é para dizer a eles o que fazer. Ele faz isso para testar o solo. Ele anda ao redor, observa e ouve. “Nesta área, o solo está certo. O ar está certo. As flores estão crescendo por aqui. Mas ali tem um problema de solo em que eu preciso trabalhar“.
O solo é a cultura, certo? Então, ele é o jardineiro da cultura e da estratégia.
Assim, ele percebe se tem que se concentrar mais na transparência ou se tem que se concentrar mais em ajudar as pessoas a falar de seus erros. Portanto, as pessoas não têm tanto medo de experimentar as coisas. E ele começa a falar sobre isso para todos. Em cada reunião individual ou de grupo, ele está falando sobre isso, e mantém o solo fértil para o crescimento.
Eu acho que essa é uma imagem muito boa para as lideranças. Em vez de serem as guardiãs, que apenas ficam controlando e autorizando a entrada e saída de ideias, ou líderes carismáticos que dizem “sigam-me”, elas devem ser jardineiras, fazendo o solo funcionar para ter mais inovação, [de forma] rápida e mais flexibilidade.
Isso nos leva à premissa número um do livro, que é que se você não tem os funcionários certos, você não pode dar-lhes liberdade. Há alguns dias eu estava em uma conferência de revendedores da John Deere Brasil, via Zoom. E com os líderes das áreas vendas em todo o Brasil, todos na mesma sala em São Paulo. E eu lhes dei alguns dilemas. E um dos dilemas que lhes dei foi: uma pessoa da sua equipe vem até você toda animada querendo colocar uma ideia em prática, mas você não acha que vai dar certo. Você vai deixá-la seguir em frente? Bem, a maioria deles disse não.
Disseram “se não é bom, se eu sei que não vai dar certo, se eu não acho que vai dar certo, então, é claro, não vou deixá-la seguir em frente”. Mas mais tarde, disseram eles, todos nós queremos dar mais liberdade a nossos funcionários para que eles sejam inovadores. E, é claro, esse é o dilema.
É fácil dizer “quero dar liberdade a meus funcionários” ou “quero que eles sejam inovadores”. Mas se não sentirmos que confiamos em nossos funcionários, porque não temos as pessoas certas no emprego certo, então não podemos dar-lhes liberdade.
Portanto, temos que começar com a dura realidade que se você não tem o melhor profissional em cada lugar, então você tem que conseguir colocar melhores funcionários em cada lugar. Você tem que tirar esses funcionários de lá, tem que demiti-los, ajudá-los a encontrar um emprego melhor para eles mesmos. E uma vez que tenhamos os funcionários certos, então precisamos conversar, porque, é claro, isto é novo para os líderes do mundo inteiro. A ideia de que não estou aqui para controlar os possíveis erros que meus excelentes funcionários possam cometer, e sim que estou aqui para deixar meus funcionários experimentarem coisas em que acreditam e reconhecerem que algumas dessas coisas vão funcionar.
O que é interessante sobre o Reed é que ele é o exemplo do que pede para os funcionários fazerem. Nós o vemos sendo extremamente transparente sobre tudo, portanto isso fica muito claro para os funcionários. “Eu não vou muito longe porque estou sendo menos transparente que o CEO da companhia“. Então, o passo importante para chegar a esse ponto, para chegar a essa meta é debater muito a cultura. Em cada encontro trimestral, que normalmente dura dois dias, uma parte do tempo é devotada a discutir a cultura. E cada vez que o tema cultura entra, ele está na agenda para solidificar a importância para os funcionários. “Vamos gastar 25% do nosso tempo falando sobre isso”.
Há muitas histórias na Netflix sobre ocasiões em que Reed subia no palco para dizer “Cometi um erro, não agi pelo bem da companhia. Ao invés de demitir um funcionário de quem eu gostava, e lhe dar um pacote generoso de saída, eu mantive essa pessoa dois anos a mais do que deveria“. Ao fazer isso e ser transparente, ele reforça essa ideia de comportamento para os funcionários: “nessa empresa, pensamos no bem do grupo, ao invés de pensar no bem do indivíduo“.
Porque ao manter um funcionário medíocre na empresa ao invés de demiti-lo, você não está mostrando amor pelo time.
Conheci o Reed por causa do meu livro The Culture Map. Ele me procurou porque tinha lido o livro e estava usando-o para se preparar para a expansão internacional da Netflix, em janeiro de 2016. Eu escrevi esse livro em 2014 e ele foi feito para ajudar equipes interculturais, equipes multiculturais e líderes executivos a serem mais efetivos trabalhando em um modelo global.
Na estrutura do mapa de cultura, decomponho a cultura em oito escalas comportamentais. Vi como construímos a confiança de maneira diferente em diferentes países, ou como tomamos decisões em diferentes partes do mundo. E então, através de um monte de pesquisas, posicionei países para cima e para baixo em escalas. E o que é importante é a distância entre os países.
Por exemplo, os brasileiros são muito mais orientados ao relacionamento do que pessoas de outros países. Mas quando trabalhei com a Gerdau no Brasil no momento em que estavam abrindo operação na Índia, o que foi muito importante para eles entenderem era que a cultura indiana era muito mais orientada ao relacionamento do que a brasileira. Mais tarde, trabalhando com a Netflix, vi como os brasileiros são muito mais orientados ao relacionamento do que os americanos.
O mapa da cultura permite que você pense sobre como sua cultura é em comparação com outra cultura. No mundo de hoje, onde podemos estar em uma chamada de Zoom com um indiano uma hora, e depois um sueco na hora seguinte, é preciso lembrar que, quando trabalhamos com a Índia, precisamos estar ainda mais orientados para o relacionamento do que no Brasil. E que quando trabalhamos com suecos é preciso ir direto ao assunto.
No mundo de hoje, esse conhecimento está se tornando muito mais útil e importante porque está tudo ligado pelo Zoom. Então, isso significa que a questão cultural está vindo mais rapidamente para nós, às vezes uma reunião após outra. E estamos em nossas casas, mas precisamos estar conscientes e sermos capazes de entender o que significam essas diferenças.
Eu defino a cultura como a personalidade de um grupo. Assim, da mesma forma que podemos descrever uma personalidade individual, também podemos descrever como é um grupo: muito sério, muito pontual… O que eu fiz no livro foi decompor os grupos culturais por nação. Mas a estrutura se aplica a todos os tipos de grupos culturais. Quer dizer, podemos aplicá-la às gerações para que possamos ver como as gerações têm abordagens diferentes da hierarquia. Gerações mais jovens em todo o mundo são mais igualitárias do que as gerações mais velhas, por exemplo.
Podemos ver como isso se aplica ao gênero. As mulheres, por exemplo, tendem a ser mais diplomáticas e mais suaves quando dão feedback. E podemos olhar da mesma forma para outros grupos nesse conceito de diversidade e inclusão. O objetivo dessa estrutura é proporcionar às pessoas a possibilidade de deixar de julgar as coisas a partir de sua própria perspectiva para, em vez disso, colocar-se no lugar da outra cultura e da personalidade do outro grupo, e pensar “como eles veem isso, como eles me veem, ou como o grupo deles vê o meu grupo“?
A ideia é que à medida que nos tornamos mais e mais diversificados, estamos trabalhando cada vez mais com pessoas que são diferentes de nós. Em vez de julgar as coisas a partir de nossa própria perspectiva, podemos procurar entender os sistemas de valores e comportamentos que são muito naturais para aquele grupo, e depois nos tornarmos mais flexíveis e mais empáticos como líderes.
Veja também
- Ale Santos imagina futuros com tecnologia e protagonismo negro
- Agilidade para transformar
- Cocriar é somar para multiplicar
- Como a Trybe garante empregabilidade no mercado de tecnologia
- Cristina Palmaka: disrupção é uma maratona
- Do dinheiro de plástico às startups, Roberto Pina é um promotor da inovação