s
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

A desilusão da IA Generativa

Muitos heavy users exigirão além do que a tecnologia pode entregar, e as próprias corporações, sem políticas de inovação nem dados estruturados, deixarão de aproveitar a promessa de eficiência

Por Yuri Gitahy * 17/04/2024

“Você já teve um sonho que parecia ser verdadeiro?
Como você saberia a diferença entre o mundo dos sonhos e o mundo real?”
– Morpheus (The Matrix, 1999) –

 

“A sala era grande, escura e fria, com paredes lisas e duras. A única luz, no canto oposto à janela, destacava o olhar fixo do adolescente sobre a tela acesa. Alheio aos restos de comida sobre a mesa, tudo que ele via era uma cascata incessante de letras e números iluminados. Uma dança fluida, frenética e mal ensaiada.

CADASTRE-SE GRÁTIS PARA ACESSAR 5 CONTEÚDOS MENSAIS

Já recebe a newsletter? Ative seu acesso

Ao cadastrar-se você declara que está de acordo
com nossos Termos de Uso e Privacidade.

Cadastrar

A missão era humanamente impossível, mas perfeita para a IA: aprender a reconhecer milhares de pessoas, reduzindo milhões de pixels para a representação alfanumérica mais simples possível. Assim, se visse uma dessas pessoas novamente, a IA seria capaz de reconhecê-la em tempo real.

A tela representava seus diferentes estados de memória, que deveriam ser mais eficientes com o tempo. No entanto, alternando rapidamente o olhar entre diferentes pontos do monitor, o jovem programador percebia cada vez menos ordem e mais dígitos aleatórios. Ágil e incansável, mas ainda confusa, a IA conectava partes antes isoladas e buscava novos caminhos para resolver o problema que ainda não havia compreendido totalmente.

Horas mais tarde, como que despertando de um transe, o programador sentia os primeiros raios de sol tocando seu rosto. Esfregando os olhos com força, tinha somente uma certeza: continuaria preso àquele longa-metragem mudo de flashes rápidos e desconexos. Um suspense ansioso de final imprevisível, projetado, assistido e criticado ao mesmo tempo em que era roteirizado e encenado… Por uma máquina.”

O deserto do real

Você acha que o texto acima foi escrito por um humano, ou foi copiado e colado diretamente do ChatGPT? Dedique o tempo que precisar para decidir.

Se você pensou por alguns segundos, se precisou rever o texto ou consultar um detector online de IA, não se preocupe: as três reações são totalmente aceitáveis. Se não recorreu a esses artifícios, uma resposta rápida e segura mostra que você confia na sua capacidade. E caso você tenha acertado, fica a pergunta: até quando você conseguirá fazer isso?

Eu mesmo escrevi esse micro conto do programador. A cena reflete uma situação real das minhas próprias noites em claro ainda na faculdade, mas é facilmente confundida por diversas pessoas com uma resposta típica de IA conversacional.

Há trinta anos, quando pesquisava sobre machine learning para reconhecimento de faces no Laboratório de Computação Paralela da UFMG, as redes neurais artificiais levavam horas e até dias para aprenderem pequenos volumes de dados. Hoje, o FaceID é uma tecnologia tão comum que passa despercebida. Ninguém mais precisa virar noites treinando a IA do smartphone, notebook ou portaria do prédio para ser reconhecido. Essa tendência já é irreversível, pois cada vez mais agentes inteligentes autônomos realizarão tarefas específicas da nossa rotina em casa e no trabalho. Quantos e quais você já usa?

Cabe aqui, portanto, entender a diferença da Inteligência Artificial Generativa (ou GenAI) para outros tipos de IA. Ao invés de somente repetir comportamentos específicos para os quais foi treinada, a GenAI pode gerar novos conteúdos e ideias. A partir de uma base gigantesca de exemplos e bilhões de parâmetros, ela faz inferências e cria representações internas para o conteúdo visto. Ela se inspira na matemática e estatística para gerar textos, imagens, vídeos e música como num passe de mágica, com a qualidade aparente de um especialista.

Caso você ainda não tenha percebido, a IA Generativa é um dos pilares para a nova corrida do ouro da tecnologia: a Inteligência Artificial Geral (ou GAI), que apresentaria um raciocínio semelhante ao humano e teria a capacidade de ensinar a si própria. Mas com tudo andando tão rápido, tantas fontes de informação e tão pouco tempo disponível, como podemos compreender essas tecnologias, aplicá-las a nosso favor e garantirmos um lugar ao sol no futuro? Quanto podemos confiar na IA Generativa e como ela deve evoluir nos próximos anos?

Ciclos e expectativas

Acredito ser muito importante treinar nossas redes neurais naturais para detectar e analisar ciclos tecnológicos de curto e longo prazo. Uma ferramenta interessante para compreender inovações e prever seu impacto no setor de tecnologia é o Hype Cycle.

Criado pelo Gartner Group, famosa empresa de consultoria estratégica em tecnologia, o Hype Cycle representa a expectativa do mercado a respeito de diferentes inovações ao longo do tempo. O ciclo abaixo é bastante ilustrativo para acompanhar a aceitação e evolução das tecnologias de Inteligência Artificial. No eixo X, o tempo corre da esquerda para a direita. No eixo Y, a expectativa com a IA cresce de baixo para cima. O ponto que localiza cada tecnologia é marcado por um ícone que indica o tempo previsto em anos para que ela se torne produtiva e largamente adotada.

Observando cada etapa do ciclo com mais detalhes:

1) A primeira etapa é o Gatilho da Inovação, quando uma nova tecnologia é apresentada sem produtos comercialmente viáveis ou casos de uso comprovados. A estimativa é que ela conquiste os poucos inovadores que se interessarem por adotá-la em fase tão incipiente.

2) Com o tempo (usualmente, alguns anos), a inovação transita em direção ao Pico das Expectativas Infladas. Lá no alto, o entusiasmo sobre ela atinge seu ápice com a proliferação de notícias e storytelling de sucesso… mas muitos fracassos. Neste momento, é comum que se supervalorize a maturidade da tecnologia e se criem expectativas ainda irreais por resultados fortemente positivos.

3) Conforme o tempo passa, essa nova tecnologia declina para o Vale da Desilusão. A realidade se instala, o interesse diminui e muitos abandonam sua adoção. Pouquíssimas empresas desafiam as probabilidades, aprendendo com seus erros, refinando e melhorando a tecnologia. Essa etapa tende a durar muitos anos, proporcionais à complexidade da inovação.

4) Os negócios competitivos e com fortes diferenciais começam então a subir a Ladeira do Esclarecimento, entendendo melhor como a tecnologia pode ser aplicada com benefícios reais no dia a dia das empresas e na rotina da sociedade. Os casos de uso são mais claramente definidos e começam a demonstrar o valor prático da tecnologia, conduzindo a uma compreensão mais realista e estruturada de suas capacidades e limitações.

5) A expectativa sobre a inovação se estabiliza no trecho final do ciclo, chamado de Platô da Produtividade. É no início deste trecho que o hype acaba e a inovação atinge a maturidade, sendo mais amplamente adotada, aceita e agregando valor de maneira consistente.

Neste ponto do ciclo, todos entendem as capacidades da tecnologia, levando a uma adoção ainda mais ampla e à estabilização da inovação. Todo um ecossistema de soluções prolifera em torno dos players nesse trecho.

Concluindo…

Este é um ótimo artigo para entender mais sobre o Hype Cycle e estudar sobre o seu nicho ou setor em específico. Mas o que isso tudo diz sobre a GenAI?

O vídeo neste post mostra como a Inteligência Artificial Generativa se comportou no hype cycle de IA entre 2021 e 2023. Ela foi uma das inovações mais rápidas da história ao se aproximar do pico das expectativas infladas com uma parcela tão ampla do mercado, e logo após ser mapeada pelo Gartner. Esta é uma métrica bastante interessante: mais de 200 milhões de usuários atuais do Chat GPT formam os inovadores esperados durante o primeiro ciclo de expectativas. Repare no mesmo vídeo como a Inteligência Artificial Geral (GAI) regrediu na previsão de tempo para atingir sua maturidade.

Se o trajeto pelo pico e vale desperta justamente os primeiros early adopters, existe uma parcela muito grande ainda a ser conquistada como usuários de GenAI até que a tecnologia comece a Ladeira do Esclarecimento. A inovação então se caracterizaria como uma potencial commodity tecnológica, seja em um mercado concentrado de poucos players ou fragmentado entre centenas deles. Como se vê hoje, milhares de startups estão buscando um pequeno lugar ao sol no pico da IA Generativa, mas elas se concentram em pequenas tarefas muito específicas (como face swap, geração de vídeos, legendas automáticas e outras centenas de aplicações).

Poucas startups como essas serão adquiridas por concorrentes maiores, pouquíssimas irão atingir a escala e a grande maioria morrerá (ou rastejará até morrer) nos próximos 12 meses. Eu acredito que a GenAI de 2026 terá dois modelos de negócio principais: agregadores (reunindo diversas apps especializadas de GenAI pagas pela quantidade de uso, como em um canivete suíço B2C ou B2B) e as grandes plataformas, que prestam serviços em hardware e serviços com IA assim como a AWS funciona para computação em nuvem.

É nessa segunda categoria que Sam Altman espera marcar território ao tentar captar trilhões de dólares de investimento para manter a dianteira atual da OpenAI. Apoiado diretamente pela Microsoft, Sam quer criar hardware proprietário de IA para fazer frente à NVidia. Esta, por sua vez, é líder de mercado e já começou a oferecer funcionalidades conversacionais para consumidores das suas placas RTX. Trata-se de uma guerra por potenciais milhões de usuários pagantes com receitas monstruosas… E pelo andar da carruagem, o grupo das big techs trilionárias – Google, Apple, Meta, Microsoft e Amazon, o chamado GAMMA – precisará também investir centenas de bilhões em novas frentes ou alianças que permitam sua perpetuidade futura no platô de produtividade da IA Generativa. Porque cá entre nós, Google, Apple, Meta e Amazon não têm mostrado um histórico recente de sucesso nessa frente.

Quem diria, e é até difícil de acreditar: todo esse hype sobre as maravilhas da GenAI está apenas começando a escorregar para o Vale da Desilusão ainda em 2024. Provavelmente vai decepcionar muitos heavy users, que vão exigir além do que a tecnologia entrega hoje, e as próprias corporações, que não têm políticas de inovação nem dados estruturados para aproveitarem a onda de eficiência trazida pelas tecnologias de Inteligência Artificial Generativa.

 

(*) Yuri Gitahy, autor convidado do TheShift, é investidor anjo e fundador da Lean VC.

Inteligência Artificial: 1 a cada 3 dólares de venture capital vai para a tecnologia

Inteligência Artificial

Inteligência Artificial: 1 a cada 3 dólares de venture capital vai p...

Um terço do dinheiro investido por venture capital em startups globais, este ano, foi para empreendimentos de IA, segundo o relatório recém-publicado pelo CB Insights.

IA Vertical: o que é e como gerar valor

Inteligência Artificial

IA Vertical: o que é e como gerar valor

A Inteligência Artificial Vertical (AI Vertical) já está presente, oferecendo soluções especializadas em diversos setores, criando novas oportunidades para empresas de todos os tamanhos.

Agentes, o eldorado da IA corporativa

Inteligência Artificial

Agentes, o eldorado da IA corporativa

A revolução da Inteligência Artificial tem o potencial de elevar a eficiência corporativa, integrando grandes modelos de linguagem com dados e interfaces de usuário para transformar o modo como trabalhamos.

A influência da CoT e de seus sucessores para os LLMs

Inteligência Artificial

A influência da CoT e de seus sucessores para os LLMs

A técnica Chain of Thought (CoT) se tornou uma das bases para chegarmos a uma IA que consegue raciocinar como os humanos. Entenda.

Em busca da IA prática

Inteligência Artificial

Em busca da IA prática

A indústria de IA trabalha em modelos cada vez maiores, mas enfrenta questões sobre custos, eficiência e propósito. Para que continuar criando modelos gigantescos? Não seria o caso mudar o foco para modelos menores e mais úteis?

IA Segura: sonho ou nosso pior pesadelo?

Inteligência Artificial

IA Segura: sonho ou nosso pior pesadelo?

Estudos da IBM e da EY revelam o que é preciso fazer para navegar pelos perigos com segurança e na velocidade que fará a diferença entre tornar a tecnologia uma vantagem competitiva para a organização.