The Shift

Vigilância genômica na linha de frente

Jaqueline Góes, cientista e bioquímica brasileira

O genoma do coronavírus foi sequenciado em apenas 48 horas. A média mundial de tempo é de 15 dias. Um resultado espetacular, sem dúvida, fruto de muito trabalho e da crença em avanços da Ciência, como a vigilância genômica. Pensou nos bancos de DNA usados pela polícia? Esqueça. Essa vigilância é do bem!

Desde 2016, um grupo de pesquisadores brasileiros integra uma rede de cientistas dedicada a responder e analisar dados de epidemias em tempo real: o Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE). Entre eles está a cientista e bioquímica Jaqueline Góes.

Jaqueline é formada em biomedicina pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e pós-doutoranda no Instituto de Medicina Tropical de São Paulo da USP (IMT-USP). Participa do desenvolvimento de pesquisas sobre o mapeamento do zika vírus no Brasil e realizou estágio de doutoramento na Universidade de Birmingham, na Inglaterra, desenvolvendo e aprimorando protocolos de sequenciamento de genomas completos pela tecnologia de nanoporos dos vírus zika, além de protocolos para sequenciamento direto do RNA. Coube a ela liderar a equipe que publicou a sequência completa do SARS-CoV-2, apenas dois dias após o primeiro caso de coronavírus da América Latina ter sido confirmado em São Paulo.

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Em palestra no Festival Oi FuturoJaqueline discutiu a importância da popularização do conhecimento científico para o futuro da nossa sociedade, e da vigilância genômica como ferramenta de prevenção para futuras epidemias. Que virão! Já ouviu falar na temida Doença X? A Covid pode ter sido só um prenúncio.

A The Shift realizou, em parceria com o Oi Futuro, instituto de inovação e criatividade da Oi, a cobertura do festival. Os painéis de debate estão disponíveis no canal do YouTube.

Boa leitura.

Pela valorização da Ciência

“Investir em pesquisas de impacto direto na saúde pública é investir no bem-estar da população”

“Por conta de o Brasil estar configurando como o segundo país em maior número de casos de Covid-19, hoje estamos sob os holofotes do mundo. O nosso grupo de pesquisa do CADDE está trabalhando com vigilância genômica de uma forma muito ampla aqui no Brasil. A ponto de contribuir para o conhecimento científico sobre a doença, com estudos como o publicado pela Science, agora no fim de julho.

Junto com outras 15 instituições brasileiras, conseguimos sequenciar 427 genomas do novo coronavírus (SARS-CoV-2) em circulação em 21 estados do país, e detectamos mais de 100 introduções distintas do vírus no Brasil.

Esse estudo está nos permitindo entender como o vírus vem se comportando aqui, desde o momento em que chegou no país, lá no início do ano, até hoje.

A questão para o futuro é a seguinte: a OMS tem o conceito de Doença X,  que diz respeito à possibilidade de uma epidemia internacional séria, causada por um patógeno desconhecido, que se espalharia muito rápido pelo planeta. Muitos acreditam que a Covid-19 seja essa Doença X. A própria OMS tem considerado essa possibilidade, sem descartar a emergência de outras doenças com os mesmos critérios no futuro.

Existe uma relação entre taxa de infecção e taxa de mortalidade. Geralmente, quanto mais transmissível é o vírus, menos mortal ele é. Quando a taxa de mortalidade é alta, o vírus acaba por não conseguir ser transmitido para muitas pessoas porque a própria doença é autolimitante. Uma vez que o doente é retirado do contato social, seja por estar muito debilitado ou por vir a óbito muito rápido, a transmissão é interrompida.

No caso da Covid-19, muita gente não apresenta os sintomas da doença e a transmite, fazendo com que ela vá se alastrando cada vez mais rápido. Se a gente pensar bem, entre o primeiro caso na China, no fim do ano passado, até o primeiro caso chegar aqui, a gente teve no máximo três meses para ele viajar da China até o Brasil. E não por via direta. Primeiro o vírus circulou na Europa.

Por isso ainda existe a possibilidade de ocorrência de outra Doença X, em algum momento no futuro. Até lá a gente vai enfrentar outras situações de epidemia que tornam muito importante a vigilância genômica viral e o compartilhamento de dados e informações na comunidade científica. Temos muitos vírus ainda desconhecidos.

A vigilância genômica permite fazer um monitoramento do comportamento dos vírus e entender como estão caminhando.

Ao se propagar, e passar de um hospedeiro a outro, o vírus vai carregando informações importantes de onde veio, por onde passou, para onde está indo, e as mutações e alterações que sofreu e que, de algum modo, contribuíram para aumentar ou diminuir a sua gravidade e capacidade de transmissão. Essas informações são relevantes para a elaboração das políticas de saúde pública por parte dos governos e, também, para ajudar a justificar a produção de novas vacinas e medicamentos. Por exemplo, das 121 cepas do coronavírus que circularam no Brasil, temos três predominantes. Essa informação pode ser usada para justificar a produção de uma vacina usando essas três cepas.

Algumas dessas informações podem ficar gravadas no genoma, e outras não. Vai depender muito da taxa de variabilidade genética dos vírus, que é justamente a quantidade de mutações que o vírus vai acumulando ao longo do tempo.

A vigilância genômica pode trabalhar tanto com vírus epidêmicos, como está sendo o caso do SARS-CoV-2, quanto com vírus endêmicos, como no nosso caso aqui, da dengue, da febre amarela, da Zica. Mesmo que eles diminuam a incidência em alguns períodos do ano, a gente consegue acompanhar e prever a ocorrência de surtos, da linhagem, em tal época. De posse dessas informações, as secretarias de Saúde podem se prevenir e tomar medidas preventivas.

Se a China estivesse fazendo vigilância genômica, talvez o coronavírus tivesse sido identificado antes. Já existem alguns relatos de que o vírus já circulava em novembro, embora o primeiro caso tenha sido reportado em 1 de dezembro do ano passado.

Nenhum vírus emerge do nada. Existe todo um processo de transmissão que a gente chama de críptica, que é a transmissão silenciosa, para depois emergir como epidemia.

Mesmo o nosso processo de vigilância aqui no Brasil teria sido muito mais robusto se a gente tivesse conseguido avaliar um valor representativo de todos os estados do Brasil já no início. Ou de todas as cidades com ocorrências de Covid-19. Não foi o que fizemos. Mesmo assim, identificamos cepas que surgiram em São Paulo e no Rio de Janeiro e foram espalhadas para outros estados por conta da migração interna.

Diante da importância de conter a emergência de epidemias, investir em pesquisas cujos resultados impactam diretamente a saúde pública é investir também no bem-estar da população geral.

Nosso grupo é um ponto fora da curva em termos de condições de trabalho, porque recebemos recursos do Reino Unido e da FAPESP. Em uma área onde praticamente todos os materiais e equipamentos são importados, pagos em dólar, faz muita diferença. Pesquisadores que dependem só de recursos federais e estaduais estão passando por muitas dificuldades hoje. Também precisamos formar mais gente.

Eu mesma, aprendi a tecnologia utilizada no sequenciamento do genoma do coronavírus durante o doutorado, no âmbito do projeto Zika, que constituiu 80% do caminho para que pudesse participar desse sequenciamento na USP.

Vivemos de um momento muito bom para a ciência, com investimentos altos de governos anteriores. Fui fruto disso. Pude me especializar e estudar fora com o Ciência sem Fronteiras. Quando saí do Brasil vi a facilidade de estudar ciência em outros lugares. Na Inglaterra, se um reagente acaba, você pega um novo e continua sua pesquisa. Aqui, você espera 45 dias para ter outro no estoque. Nesse tempo dá para escrever um artigo sobre o estudo.

Todo mundo fala que um grupo de brasileiros conseguiu sequenciar o genoma do coronavírus em 48 horas. Na verdade foi em 24 horas. A gente já vinha se preparando para isso. Já existia um planejamento prévio para sequenciamento do vírus mesmo antes do primeiro caso ter sido reportado. Mas quisemos fazer de novo para ter certeza do resultado.

Usamos uma tecnologia ainda nova no mercado, de nanoporos, e temos trabalhado incessantemente para atualizar os protocolos de sequenciamento.

Cada vez que conseguimos aprimorar um protocolo, é um tempo a menos que se gasta no processo, e um tempo que se ganha à frente do vírus. O investimento necessário para que isso acontecesse, portanto, não veio de uma hora para a outra.

A Ciência brasileira tem preparo e conhecimento para fazer o Brasil avançar. Mas, para isso, a gente precisa da população, de incentivo e de políticas que estejam, de fato, voltadas para a importante missão que os cientistas têm, de trazer respostas para desafios do dia a dia. E, no meu caso, um desafio de Saúde Pública.

Hoje somos protagonistas porque temos um número grande de casos. A gente tem muito recurso do patógeno para ser utilizado. Então a gente tem pesquisas aos montes. Estamos em condições de gerar muito conhecimento. O mundo está esperando por esses dados que estamos gerando. E isso constitui para a Ciência brasileira um avanço inestimável. A comunidade internacional está muito atenta a tudo o que está acontecendo nos Estados Unidos e no Brasil. Não sei se isso se repetirá para a frente.

A gente está experimentando hoje o que nunca se viu em termos de compartilhamento de dados de produção científica. Mesmo com a estrutura de divulgação científica e de publicação não estando preparada para receber o volume de informações que está sendo gerado e para a nova dinâmica que nós estamos vivendo. Algumas publicações estão exigindo um critério de ineditismo da produção científica que tem levado alguns pesquisadores a resguardarem o andamento de seus trabalhos, e acabam privando a comunidade de informações, até estar pronto para a publicação em uma revista renomada.

Agindo assim a gente deixa de fornecer para a sociedade as informações relevantes obtidas e de contribuir para o rápido avanço da Ciência. O compartilhamento de dados e a divulgação científica precisam ser mais ágeis.

Acredito que o nosso trabalho ajudou a nossa população a se aproximar mais do que é fazer Ciência e a compreender a necessidade de apoiá-la. Creio que a mudança que queremos, por mais investimento em saúde pública, incluindo as pesquisas, precisam de apoio popular. E talvez tenhamos conseguido mostrar um pouco a importância da Ciência, no contexto atual.

A gente precisa popularizar o conhecimento científico principalmente entre a população de menor acesso a esse tipo de informação, para que eles possam compreender como se portar em uma epidemia, por exemplo. Muito do que a gente viu no Brasil foi uma desobediência às orientações de distanciamento social e precarização do uso da máscara. Primeiro porque para algumas famílias, que moram em casas com dois, três cômodos, o distanciamento é praticamente impossível. Mas quando ela entende que mesmo nesse contexto ela pode adotar medidas como usar máscara, evitar contato físico, lavar as mãos, é possível mitigar a transmissão do vírus.

A comunicação científica precisa chegar nessas pessoas. A gente precisa falar em uma linguagem de fácil compreensão, utilizando tecnologias que facilitem o acesso.

Nem todo mundo tem condições de ler uma cartilha e compreender o que está lá, por mais ilustrada que ela seja. A gente precisa pensar em vídeos, áudios. Campanhas educativas na TV, no rádio, nas redes sociais, além das escolas.

Nós, cientistas, precisamos estar atrelados não só à questão particular nossa, que é obter êxito naquilo que estamos fazendo, em termos de pesquisa, mas também de conseguir interagir com a população. Explicar a importância do processo científico de descoberta dos genomas virais e do conhecimento gerado. Convencê-la de que aquilo que estamos fazendo tem um significado. É relevante. Tem um resultado confiável. Tudo isso a partir da perspectiva de que também somos seres humanos que queremos uma resolução rápida para isso que estamos vivendo e para o que virá.

Três pilares construirão o futuro, colocando a Ciência na linha de frente: o da própria Ciência, que trará avanços; o da crença da população nessa Ciência; e o da reformulação das nossas relações com o meio ambiente, com essa casa que nos cerca e o que vamos passar para as gerações futuras.

Teremos outros surtos, uma segunda, ou a terceira onda de Covid-19, ainda mais com o afrouxamento das intervenções não-farmacêuticas de combate à propagação. Então precisamos que a informação correta chegue aos lugares que tem que chegar.

Precisamos nos preparar para a chegada de outros microrganismos mais à frente. Como? Investindo na produção do conhecimento que poderá mudar o nosso relacionamento com o meio ambiente e levar a novas formas de prevenção.”