The Shift

Inovação ajuda a chacoalhar mobilidade no Brasil e no mundo

Quando nos deparamos com todas as complexidades que envolvem a mobilidade urbana, fica claro que promover o desenvolvimento e a ampliação do transporte coletivo e impulsionar a micromobilidade são grandes desafios que exigem boas ideias, tecnologia, planejamento e atitude.

“Qualquer que seja o sistema adotado para o transporte coletivo, não se pode nunca deixar de considerar a rede integrada, sem a qual as questões da mobilidade permanecerão sem resposta”, afirmou Carlos Ceneviva, grande pensador urbanista em 2015. Segundo ele, cada gestor de cidade deveria considerar o espaço existente e as necessidades dos cidadãos. “Não se pode pensar apenas no transporte público, isoladamente”.

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O trabalho é longo, mas existem diversas iniciativas inovadoras no Brasil e no mundo que mostram como é possível, com apoio da tecnologia, projetar uma mobilidade urbana digna de cidades do futuro.

Transporte coletivo como centro da estratégia

Londres é uma referência em transporte público com capilaridade e qualidade. Só o seu metrô possui mais de 400 km de trilhos e 270 estações – a título de comparação, São Paulo, a cidade brasileira com a maior rede de metrô do país, tem 100 km e 84 estações. O metrô é integrado a um sistema de trens e ônibus, além de estações intermunicipais.

Os ingleses, porém, foram além da infraestrutura para garantir a centralidade do transporte público. Em 2003, a prefeitura de Londres implantou o congestion charge, conhecido por aqui como pedágio urbano: para circular de carro pelo centro da cidade, local que concentra os escritórios e atrações turísticas, é preciso pagar uma taxa considerável. Em dez anos, a prefeitura arrecadou 1,2 bilhão de libras, o equivalente a US$ 1,59 bilhão. Esse dinheiro foi integralmente investido no transporte público. A cidade também ganhou com uma queda nos índices de poluição. A partir de 2019, o valor do congestion charge aumentou para veículos mais antigos e poluentes, como modo de derrubar os índices de emissão de dióxido de carbono.

No Brasil, a já apontada necessidade de maior investimento em transporte público de média e alta capacidade tem dado prioridade aos chamados Bus Rapid Transports (BRTs), que basicamente consistem em modernos corredores expressos de ônibus, que são fisicamente segregados por blocos de concreto e nos quais as paradas se dão em estações de embarque e desembarque.

O pulo do gato dos BRTs é o custo de implantação dos seus corredores, que de acordo com dados do ITDP, é bem menor do que o de outros modais: cerca de 10% do custo para implementação de metrôs, e entre 30% e 60% dos custos para a instalação dos Veículos Leves sobre Trilhos (VLTs). Hoje, na divisão por modais no país, o BRT representa 38% dos corredores brasileiros, seguido pelo metrô com 29%, e dos ônibus, com 28%.

Dentro dessa perspectiva, os estudos do ITDP apontam que, a partir dos anos 2000, o Brasil teve um aumento significativo na extensão de corredores de transporte de média e alta capacidade. “O problema é que, atualmente, não temos grandes investimentos acontecendo em sistemas de transporte público”, ressalta Clarisse Linke, diretora do ITDP, “ao menos, não no montante que seria necessário”.

BlaBlaCar: otimizando a circulação com visão de negócios

Além das iniciativas que estimulam o transporte público e a micromobilidade, outros projetos têm buscado otimizar a circulação já existente nas ruas – contando, para isso, com uma mãozinha da tecnologia.

Foi na França que surgiu o projeto do BlaBlaCar, unicórnio que se consolidou por meio de seu app de mobilidade baseado em caronas de longa distância – já são 89 milhões de usuários em 22 países, Brasil incluso. As viagens vão de 70 a 1000 km e o condutor divide com os passageiros os custos do deslocamento, pagando apenas um valor simbólico à plataforma.

Em entrevista à The Shift, o country manager de Operações do BlaBlaCar no Brasil, Ricardo Leite, explicou que esse modelo 100% digital da empresa, totalmente baseada em conectar passageiros e propiciar a ocupação dos lugares vagos nos automóveis, possui algumas vantagens principais, especialmente no contexto da pandemia.

A primeira é que a BlaBlaCar não precisou se ‘tornar’ digital do dia para a noite – essa já era a sua essência. A segunda é que, como a empresa não é detentora dos veículos, seu custo marginal é praticamente zero; em um momento de queda no número de viagens como o atual da Covid-19, o impacto financeiro não foi tão grande assim.

E, por último, a plataforma mantém seu valor utilitário, propiciando acesso a caronas a quem teve de continuar se deslocando na quarentena, e conectando usuários aos bancos de passageiros livres nos carros que já estão nas ruas – auxiliando, desse modo, a mitigar questões econômicas e ambientais ligadas ao excesso de automóveis em circulação.

Projeto de sensores de IoT na cidade de Santander

Mundo conectado: tecnologia a serviço da mobilidade

E por falar nessa relação entre a tecnologia e a circulação que já ocorre nas ruas, na Espanha um projeto baseado em Internet das Coisas (IoT) impressiona ao promover uma revolução na mobilidade urbana e em diversos outros serviços públicos. Na cidade de Santanter, considerada uma das cidades inteligentes (smart cities) mais notáveis do planeta, um projeto iniciado em 2010 instalou mais de 12 mil sensores em locais relacionados a estacionamento, transporte coletivo e tráfego, e ainda iluminação e coleta de resíduos.

O resultado é uma impressionante coleta de dados que permite, por exemplo, que o motorista veja em painéis em tempo real a informação sobre disponibilidade e a localização de vagas para estacionamento, facilitando para que gastem menos tempo circulando; além disso, é possível ver também nesses painéis a situação do trânsito nas vias (já que os sensores medem a densidade do tráfego), o que possibilita a escolha de rotas alternativas.

Mas não para por aí: nos pontos de ônibus e no aplicativo da cidade, é possível saber sobre tempo de espera pelo transporte, localização e outras informações; e o app ainda informa os locais e a disponibilidade para aluguel de bicicletas, e também detalha onde ficam os pontos de táxi mais próximos com carros livres.

Para além dos deslocamentos, os sensores instalados em postes de iluminação e nas próprias lixeiras auxiliam a prefeitura a controlar a quantidade de energia utilizada nas ruas, ou quantos caminhões serão necessários para a coleta de resíduos.

O teste mais recente envolve geolocalização. A proposta envolve utilizar sensores com sensibilidade para sons, que, à medida que captam a frequência de sirenes, conseguem habilitar o controle de tráfego e propiciar a criação de faixas prioritárias para ambulâncias e viaturas.

Aplicações de Big data no trânsito: um case brasileiro

Uma tecnologia avançada como essa de Santander tem o potencial de gerar um amplo arcabouço de dados complexos e em grande quantidade. O trabalho com Big Data voltado à mobilidade torna-se, dessa maneira, essencial para implementar melhorias no sistema. Isso exige, porém, um trabalho em conjunto unindo políticas públicas e plataformas de análise e gerenciamento de dados sobre trânsito.

Um case brasileiro que se destaca nessa área é o da Scipopulis, empresa de inovação focada em soluções para cidades inteligentes fundada em 2014, e adquirida em 2019 pela green4T, companhia especializada em infraestrutura digital.

O trabalho da Scipopulis originou a Trancity, que nas palavras do CEO Roberto Speicys, “é uma plataforma web para tornar a gestão dos sistemas de ônibus mais inteligente”. Para isso, explica Speicys, “um software em nuvem cruza os dados fornecidos pelas prefeituras para oferecer uma visão da oferta de ônibus em tempo real, e permite cruzar essas informações com a demanda”.

Os benefícios da incorporação dessa tecnologia pelos órgãos que cuidam da mobilidade são diversos. “Uma opção é a possibilidade de ajustar o número de coletivos em circulação para atender à demanda específica de cada horário; dessa forma, é possível aumentar a frota nos horários de pico, e reduzir o número de veículos nos horários de menor demanda, por exemplo”, diz o CEO.

No contexto da pandemia, a demanda por um serviço desse tipo se torna mais importante ainda. O próprio Roberto Speicys relembra as determinações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para distanciamento social, que exigem que o transporte coletivo repense a questão da distância segura entre passageiros. “Enquanto algumas linhas já operam próximas à capacidade máxima, outras viram uma queda drástica de passageiros que, com a reorganização dos métodos de trabalho, com home offices e trabalho híbrido, e que podem ser permanentes em algumas regiões da cidade”, aponta o especialista.

Essas questões expõem a necessidade de uma revisão na malha do transporte público, e de um redirecionamento de recursos para áreas que mais demandam. “E num cenário como esse, uma análise rápida e eficiente de dados relacionados à mobilidade se torna fundamental”, reforça Roberto. As maiores capitais brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, já utilizam essa solução.

Nessa perspectiva, Clarisse Linke, diretora executiva do ITDP, vê com bons olhos iniciativas que envolvem uma integração entre o poder público e soluções tecnológicas que envolvem inovação, transporte coletivo e mobilidade urbana, em busca de uma cidade realmente inteligente e do futuro.

“Partindo do princípio que estamos trabalhando com dados abertos, e buscando, com isso, promover um transporte sustentável, de baixo carbono, mais inclusivo, com maior participação e com maior interação entre a sociedade e o poder público, vejo a inovação como algo muito positivo”, sintetiza.