Há um paradoxo silencioso atravessando as organizações contemporâneas. Nunca se falou tanto de futuro — e raramente ele foi tão pouco relevante para as decisões que realmente moldam o amanhã.
Com a crescente ansiedade gerencial em paralelo com a incerteza econômica, geopolítica e tecnológica, o planejamento de cenários voltou a despertar forte interesse entre executivos que buscam se preparar para o que ainda não podem prever. O paradoxo é que embora haja muito a aprender ao imaginar uma ampla gama de possíveis cenários externos, muitas organizações continuam incapazes de absorver e integrar essas lições em seus processos reais de tomada de decisão estratégica.
Esse descompasso não decorre de ingenuidade. Ele é estrutural. Planos de longo prazo, visões estendidas e roadmaps até 2030 ou 2040 circulam com naturalidade em apresentações e relatórios. Ainda assim, as escolhas que definem capacidades, estruturas e dependências continuam sendo feitas em janelas cada vez mais curtas. O problema não é falta de ambição temporal. É a erosão do horizonte estratégico como referência operacional.
Essa erosão não acontece de forma abrupta. Ela se instala gradualmente, quando o tempo deixa de ser tratado como variável estratégica e passa a ser visto apenas como restrição. As organizações não deixaram de pensar no longo prazo. Elas deixaram de usá-lo.
A literatura de estratégia sempre reconheceu que decisões produzem efeitos assimétricos no tempo. Henry Mintzberg já alertava que estratégia não é um plano, mas um padrão de escolhas que se revela ao longo dos anos. Ou sejo, o de ser vista como “um padrão consistente de comportamento ao longo do tempo” que emerge de uma série de escolhas repetidas, e não apenas como um plano formal previamente organizado. Da mesma forma, Peter Schwartz, em “The Art of the Long View“, argumenta que o valor dos cenários não está em prever o futuro, mas em preparar líderes para lidar com múltiplos futuros plausíveis, ampliando a capacidade de decisão estratégica diante da incerteza. Ainda assim, algo se perdeu no caminho.
A pressão por velocidade comprimiu o espaço decisório. Ao mesmo tempo, a complexidade tecnológica, regulatória e social alongou dramaticamente o impacto das decisões. O que antes era exceção tornou-se regra: decisões rápidas com efeitos longos. Nesse ambiente, o médio prazo, no qual escolhas ainda podem ser revistas, ajustadas ou reorientadas, praticamente desaparece. Tudo o que não é imediato se torna abstrato. Tudo o que é estrutural passa despercebido.
É comum ouvir executivos falarem da necessidade de “equilibrar curto e longo prazo”, como se fossem polos opostos. Na prática, essa dicotomia cria uma divisão confortável: o curto prazo decide; o longo prazo inspira. Um habita as decisões reais; o outro, os discursos. O problema é que as decisões mais perigosas raramente se anunciam como estratégicas. Elas aparecem como ajustes táticos, respostas pontuais ou otimizações inevitáveis.
O próprio artigo da HBR reconhece esse limite. O planejamento de cenários é um bom ponto de partida para lidar com a incerteza nos negócios, justamente porque amplia a visão estratégica dos líderes. O problema começa quando ele é tratado como um exercício isolado, desconectado das escolhas que realmente importam. Nesse formato, cenários informam o debate — mas não transformam a decisão.
Escolhas de arquitetura tecnológica, modelos de incentivo, contratos extensos, aquisições defensivas ou cortes aparentemente marginais raramente são discutidos como decisões de futuro. Isoladas, parecem racionais. Acumuladas, definem o destino da organização com muito mais força do que qualquer visão declarada. Como mostram Rafael Ramírez e Trudi Lang, no artigo “A Faster Way to Build Scenarios“, falhas estratégicas tendem a surgir menos de eventos inesperados e mais de suposições não examinadas que orientam decisões cotidianas.
À medida que o horizonte estratégico se afasta das escolhas concretas, a própria estratégia muda de função. Ela deixa de operar como mecanismo de escolha e passa a funcionar como narrativa de controle. Os gestores que conseguem expandir a sua imaginação para vislumbrar uma gama mais ampla de futuros possíveis estarão muito mais bem posicionados para aproveitar as oportunidades inesperadas que surgirem. E os gestores de hoje têm algo que aqueles líderes da área da defesa não tinham: o planejamento de cenários. Visões longas tranquilizam. Roadmaps extensos sinalizam coerência. O futuro vira algo a ser explicado, não algo a ser tensionado.
É nesse ponto que o diagnóstico do artigo “How to Make Scenario Planning Stick” se torna decisivo. Para que o planejamento de cenários se torne uma prática contínua — e para que seus benefícios sejam plenamente realizados — ele precisa ser integrado a outros processos organizacionais. Sem essa integração, cenários permanecem como insights interessantes, porém periféricos, incapazes de alterar prioridades, alocação de recursos ou decisões irreversíveis.
Parte da dificuldade está também em como as organizações lidam com a própria incerteza. Estratégias falham menos por ignorar incertezas e mais por perder de vista restrições estruturais que já delimitam o espaço do possível. Quando tudo parece instável, nenhum horizonte parece confiável. O curto prazo passa a dominar por default.
Nesse contexto, o uso tradicional de cenários como ferramenta para “pensar longe” se mostra insuficiente. Toda organização já opera dentro de um ghost scenario: um conjunto implícito de suposições que orienta decisões cotidianas. O cenário mais perigoso não é o alternativo. É aquele que já está em vigor e nunca foi nomeado.
Quando esse cenário implícito não é explicitado e tensionado, o futuro não é escolhido. Ele é herdado. A organização não abandona o longo prazo deliberadamente. Ela o inviabiliza aos poucos, decisão após decisão, quase sempre com justificativas razoáveis. A cada ciclo, um pouco de opcionalidade se perde. A cada ajuste, o espaço de manobra diminui.
Aqui, o debate deixa de ser metodológico e se torna claramente um problema de liderança. Líderes atuais foram formados em contextos onde otimização, velocidade e clareza eram vantagens competitivas. Esses reflexos continuam operando mesmo quando o ambiente exige outra postura: sustentar ambiguidade, decidir sem fechar opções cedo demais, manter múltiplos horizontes ativos. Como aponta a publicação “Using the Future“, do Copenhagen Institute for Futures Studies, foresight falha menos por falta de compreensão e mais porque exige ajustes de postura, não apenas de processo.
Cenários introduzem fricção onde havia consenso. Desaceleram decisões que parecem óbvias. Colocam em questão estilos de liderança baseados em convicção e controle. Não é surpresa que encontrem resistência — não por serem abstratos, mas por serem desconfortavelmente concretos.
Reposicionar os cenários para a liderança executiva exige abandonar algumas expectativas. Eles não são previsão. Não são visão. Não são exercício criativo. São uma disciplina de calibração temporal da decisão. Ajudam a distinguir urgência de irreversibilidade. A separar o que pode ser ajustado do que fecha caminhos. A revelar onde o curto prazo está colonizando decisões estruturais sem que isso seja explicitado.
O futuro não desapareceu das organizações. Ele foi empurrado para fora do espaço onde decisões reais acontecem. Recuperar o horizonte estratégico não significa planejar mais ou desacelerar tudo. Significa reconhecer que, em um mundo comprimido pelo tempo, a vantagem não está em decidir mais rápido — mas em saber quando não acelerar.
Cenários, quando levados a sério, não prometem clareza sobre o futuro. Eles restauram algo mais raro: a capacidade de liderar através do tempo, e não apenas dentro do próximo trimestre.
Reposicionando os cenários para a liderança executiva
Cenários ajudam a trazer para a mesa perguntas que raramente aparecem nas reuniões onde decisões reais são tomadas:
- Estamos decidindo rápido demais algo que não admite reversão?
- Onde estamos tratando irreversibilidade como se fosse ajuste tático?
- Que escolhas de hoje nossos sucessores não poderão desfazer?
- Onde o curto prazo está colonizando decisões estruturais sem que isso seja explicitado?
Se organizações quiserem recuperar a relevância dos cenários, precisam reposicioná-los. Não como previsão. Não como visão. Não como exercício criativo. Mas como disciplina de calibração temporal da decisão.
Cenários ajudam líderes a distinguir urgência de irreversibilidade. A separar o que pode ser ajustado do que fecha caminhos. A revelar onde decisões aparentemente táticas estão, na prática, definindo o futuro.
Nesse sentido, cenários não resolvem o problema do futuro. Resolvem algo mais imediato — e mais difícil: a incapacidade das organizações de decidir no tempo certo.