“As utopias estão voltando porque precisamos imaginar como salvar o mundo”
(Margaret Atwood)
Para qualquer lado que olharmos, vamos encontrar pessoas cansadas e inseguras diante do futuro. As redes sociais estão lotadas de conteúdos sobre depressão, burnout, crises de ansiedade. Pesquisa recente do Datafolha revelou que jovens entre 16 e 24 anos e mulheres foram os que tiveram a saúde mental mais afetada durante a pandemia de Covid-19. Entre os jovens, 56% relataram sintomas de depressão e ansiedade. Já entre as mulheres, esse total chegou a 53%. Além disso, as buscas relacionadas ao tema no Google Brasil atingiram o maior patamar desde 2006, com as pessoas pesquisando por definições de ansiedade, que ficou em primeiro lugar, seguida por depressão. Em todo o mundo, o Brasil foi o país que mais pesquisou sobre ansiedade entre janeiro e setembro de 2021 na plataforma.
Esse contexto acentua os desafios dentro do cenário corporativo. Conflitos causados por escutas parciais, julgamentos antecipados, alguns deles certamente ampliados pelo trabalho virtual – cujas fronteiras entre vida profissional e vida pessoal, já defendidas como indissociáveis há algum tempo, se diluíram mais ainda – vêm causando, em muitas pessoas, sobrecarga emocional e dificuldades para fazer uma gestão do tempo equilibrada. E a maior impactada nesta equação é a qualidade de vida. As pessoas crescem, amadurecem e envelhecem, mas apenas sobrevivem, ao invés de viver.
De outubro de 2019 a fevereiro de 2020, a Somerset House, em Londres, apresentou uma incrível exposição dedicada à cultura 24/7 com mais de 50 artistas e designers, a qual tive a sorte de ver de perto. Anunciada como “um alerta para o nosso mundo ininterrupto”, a exposição foi dividida em cinco grandes temas: dia e noite, atividade e descanso, humano e a máquina, trabalho e lazer e individual e coletivo.
“Cada seção representou uma tensão que sentimos – dormindo ou navegando em nosso celular, isolados no trabalho ou juntos”, explicou a curadora da exposição, Sarah Cook. Na minha percepção, a exposição ilustrou a luta da sociedade para se desligar e se posicionou contra a pressão implacável para produzir e consumir 24 horas por dia.
Segundo uma pesquisa realizada pela Qualcomm, com 4,7 mil pessoas de oito países, um recorte do Brasil revelou que 60% dos brasileiros checam seus dispositivos pelo menos a cada 30 minutos. Mais de um terço deles (35%) conferem o celular a cada 10 minutos.
Além disso, estamos todos trabalhando mais horas. Desde 2010, as pessoas acrescentaram uma média de uma semana de trabalho completa (37 horas) ao ano de trabalho, de acordo com dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Mas o que está por trás desse cenário?
Fazemos parte de uma era de crises entrelaçadas, e é esperado que trabalhemos incansavelmente e sem reclamação. A complexidade deste momento de mundo – refletida em nossa vida pessoal e profissional – tem feito com que muitas vezes deixemos “a vida nos levar”, ou seja, vamos sobrevivendo, lidando com um dia após o outro e sem pausas para reflexões – tão fundamentais para investirmos em autoconhecimento, revisão de rota e planejamento de presente e futuros desejáveis.
A tal da positividade tóxica tem papel importante neste contexto porque a produtividade tóxica está intrinsecamente ligada a ela.
Uma referência importante que me influenciou totalmente na vontade de escrever este artigo foi Byung-Chul Han e seu livro “Sociedade do Cansaço”, um ensaio sobre os efeitos provocados na mente das pessoas pelas mudanças sociais, culturais e econômicas do século 21. Diferentemente de outras abordagens sobre o tema, o autor aponta como uma das principais causas para a piora na saúde mental das pessoas o excesso de positividade que se estabeleceu em nossa sociedade.
Diz a sabedoria popular corporativa que, quanto mais horas trabalhadas, maior a produtividade. Essa crença vem de muito tempo atrás, mais precisamente do século 18, com a Revolução Industrial. A partir de então, fazer mais com menos se tornou um mantra entoado com afinco desde a base até o topo da hierarquia nas empresas.
Funcionários que assumem mais funções do que deveriam ajudaram a moldar o que os especialistas têm chamado de produtividade tóxica — ou excesso de trabalho disfarçado de sucesso. Segundo Byung-Chul Han, a mudança de uma sociedade disciplinar para a atual sociedade de desempenho, em que todos precisam “performar o seu máximo” seria a principal razão para a explosão de doenças neuronais como depressão, transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), transtorno de personalidade limítrofe (Borderline) e Síndrome de Burnout (SB) – esta recentemente incluída na lista de doenças ligadas ao trabalho da OMS.
Atuando como gestores de si mesmos no trabalho – pois a sociedade do desempenho estimula a busca incessante por informação com uma “capa” de autodesenvolvimento, o que não necessariamente significa aprendizagem efetiva –, esses profissionais praticam a autonomia – nesse caso manifestada ao se evitar perguntas ou se expor por ausência de segurança psicológica para fazê-lo; e o protagonismo na carreira, mas tomando decisões muitas vezes precipitadas, sem análises críticas e de cenário. Tais características (autonomia e protagonismo), em princípio positivas, quando presentes nos contextos acima ou, no mínimo, com baixa análise crítica e estritamente relacionadas a produtividade e desempenho, podem ser nocivas.
Ocorre que essas pessoas se cobram com mais frequência e exigência do que os profissionais de outrora. O sujeito de desempenho, que se encontra em guerra consigo mesmo, é mais produtivo que o sujeito do dever, mas tende a comprometer mais a sua saúde mental. “No lugar de proibição, mandamento ou lei da sociedade disciplinar, entram projetos, iniciativa e motivação.” (Byung-Chul Han, 2017). Se o mundo nos diz que tudo é possível, pense no sofrimento criado antes da conclusão de que não é. Há coisas impossíveis sim, e tudo bem.
A isso soma-se a chamada “positividade tóxica”, termo que tomou conta da cultura de massa durante a pandemia e que pode ser explicado como sinônimo de alienação, não reconhecer ou falar sobre sentimentos negativos. Conforme escreve Amy Edmondson, nem sempre as empresas proporcionam ambientes de real segurança psicológica, então as pessoas frequentemente se contêm – mesmo quando acreditam que o que têm a dizer poderia ser importante para a empresa, para o cliente ou para si mesmos. A epidemia do silêncio somada ao excesso de positividade cria um ambiente em que se você reclama é porque é “braço curto” ou está “jogando contra”.
“Se você quer, você consegue”.
“Nada é impossível”.
“Você só precisa se esforçar mais”.
“Afaste essa energia negativa que você vai ver como tudo melhora!”
O resultado é uma sociedade cansada. Extenuada. Em preto e branco e opaca.
Byung-Chul Han escreve que o sujeito de desempenho está esgotado e é incapaz de sair de si, de confiar no outro. Como consequência, fica se remoendo e sendo muito duro consigo mesmo.
Dia desses, uma pessoa que trabalha comigo, recém-casada, me contou que recebeu um conselho de uma amiga sobre seu casamento: ela lhe sugeriu que, durante a cerimônia e festa, ele procurasse observar a decoração, as músicas, os amigos e familiares. Que não olhasse para tudo procurando pelo que não estava perfeito ou por quem não tinha ido. Ou seja, que desfrutasse a celebração e a festa. Quantas vezes deixamos de observar nossas conquistas, de celebrar, e nos atemos exclusivamente ao que não está certo? É de se pensar.
Acolher emoções é humanizar. Dentro de uma empresa, essa humanização se estende à organização. E emoções são anárquicas: ou você as escuta ou explode. Excesso é sintoma, assim como a escassez. Temos todos os sinais nos dizendo que é preciso olhar para as necessidades dessa realidade que se impõe ao mundo do trabalho e aprender a buscar o equilíbrio verdadeiro, buscando a consciência de si, para assim ampliar nossa relação com os outros, com o que ainda podemos aprender e com o mundo.
Precisamos de uma nova abordagem pelo nosso próprio bem-estar e pelo das pessoas que trabalham conosco, de uma ressignificação completa do trabalho. Mudar nosso olhar para ecossistemas mais líquidos. Um dos grandes diferenciais das empresas do futuro é o espaço social que elas criam para a colaboração, aprendizagem e encontros que geram ideias e negócios.
Há algumas importantes tendências em aprendizagem nesse contexto que só vêm se acentuando na atual conjuntura de mundo. Uma delas é a forma como lidamos com as emoções. Após tanto tempo relegadas a último plano, excluídas da equação da produtividade, elas encontram-se hoje, mais que nunca, no centro das necessidades para o desenvolvimento humano.
Aparentemente, temos tudo; só nos falta o essencial, a saber, o mundo. Já é hora de transformarmos nossa relação com o trabalho, a vida pessoal e o tempo.
O poder do agora é o poder da ressignificação. É movimento.
Texto de Daniela Libâneo, diretora de Tendências de Aprendizagem na Afferolab. Formada em Pedagogia pela PUC SP, tem mestrado em Arte pela Unicamp, é coautora do livro “Arte Por Toda Parte”, editora FTD, ganhador do Prêmio Jabuti de 2015.
Referências
24/7 A wake up call for our non-stop World. Sara Cook, Jonathan Reekie, Jonathan Crary. London: Somerset House Trust, 2019.
50 artists respond to society’s struggle to switch off at Somerset House’s 24/7 exhibition. Augusta Pownall. Disponível em: https://www.dezeen.com/2019/10/29/somerset-house-24-7-exhibition-phone-design/. Acesso em: 21 jan. 2022.
A organização sem medo: Criando segurança psicológica no local de trabalho para aprendizado, novação e crescimento. Amy Edmondson. São Paulo: Alta Books, 2020.
Jovens e mulheres são os mais afetados por depressão e ansiedade na pandemia. Cláudia Colucci. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/09/jovens-e-mulheres-sao-os-mais-afetados-por-depressao-e-ansiedade-na-pandemia.shtml. Acesso em: 21 jan. 2022.
OECD.ORG. Disponível em: https://data.oecd.org/brazil.htm. Acesso em: 21 jan. 2022.
Sociedade do cansaço. Byung-Chul Han. São Paulo: Editora Vozes, 2015.