The Shift

O futuro que vem depois do futuro do trabalho

Shuo Chen, sócia do fundo de capital de risco IOVC, na Califórnia

Quando perguntei à investidora Shuo Chen, sócia fundadora da empresa de capital de risco IOVC, sobre o futuro do trabalho, ela devolveu a pergunta: “De que espaço de tempo você está falando?”. Para ela, como dizemos na roça, tem muito mais carne embaixo desse angú. Essa jovem VC faz seus negócios a partir de Berkeley, no coração do Silicon Valley, investindo em startups em estágio inicial, com foco no futuro do trabalho e mercado corporativo SaaS.

Como empreendedora, Shuo investiu em empresas agora adquiridas por Goldman Sachs, Ford, Caterpillar, Binance e Dialpad, bem como unicórnios como Boom, Checkr, Grubmarket, Instacart e Rescale. Ela ajudou as empresas do portfólio a fechar negócios com Amazon, Apple, Google, Mercedes-Benz e NASA, entre outros, bem como escalar as startups para Europa e na Ásia.

Shuo entrou para a lista de 2022 dos “30 under 30” da revista Forbes. Não sem motivo. Além de ter fundado a IOVC há sete anos, é professora de empreendedorismo na UC Berkeley há dez anos e também dá aulas na Singularity University, onde é Singularity Expert. E ainda arranja tempo para ser gardening geek, como explica em seu currículo, e ser um dos 13 membros votantes da Comissão de Saúde Mental da Califórnia, que inclui supervisionar US$ 2,6 bilhões anualmente no orçamento do estado e aconselhar o governador ou o Legislativo sobre política de saúde mental.

CADASTRE-SE GRÁTIS PARA ACESSAR 5 CONTEÚDOS MENSAIS

Já recebe a newsletter? Ative seu acesso

Ao cadastrar-se você declara que está de acordo
com nossos Termos de Uso e Privacidade.

Cadastrar

Ela foi keynote speaker na semana passada na conferência Glocal Experience, no Rio de Janeiro. Essa entrevista exclusiva ela concedeu via Zoom, falando da Europa, onde estava dando aulas para executivos em um curso de uma semana. Na conversa, falamos do que as empresas esquecem de pensar sobre o futuro do trabalho, sobre startups, sobre criatividade e sobre a importância, vital, de nos mantermos continuamente curiosos sobre o futuro acelerado, sob pena de perder o lugar na fila. Ela lembra que ao pensar no futuro do trabalho é preciso olhar a questão de três diferentes perspectivas – o trabalho em si (work), o espaço de trabalho (workplace) e a força de trabalho (workforce), sustentadas por quatro pilares: transformação digital, automação do trabalho, hibridização do espaço de trabalho e diversificação da força de trabalho. Confira.

O que estamos esquecendo sobre futuro do trabalho…

“Eu dirijo um fundo de capital de risco em tempo integral, e nós investimos em startups focadas no futuro do trabalho, principalmente empresas B2B no modelo SaaS, que vendem para grandes empresas estabelecidas. Eu também dou aula na Faculdade de Engenharia da UC Berkeley e nessa função, lido não só com estudantes de graduação e pós-graduação, mas também com muitos executivos que estudam. Portanto, vou usar essas perspectivas para responder.

Quando penso nesses diferentes papéis, vejo que há sobreposições, mas também há diferenças. O que eu sinto que está faltando é a real percepção da evolução rápida da natureza do futuro do trabalho.  Tendemos a superestimar as mudanças de curto prazo e subestimar as mudanças a longo prazo.

Vou explicar melhor. Gosto de definir o futuro do trabalho em 4 pilares principais. O primeiro é o trabalho em si, e nesse caso estamos falando de um grande movimento de automação do trabalho. O segundo é o local onde trabalhamos, que eu defino como a hibridização do espaço de trabalho Isso é uma coisa em que já vínhamos investindo muito antes da pandemia, só não sabíamos que todos iriam trabalhar em casa, mas parece fazer todo sentido facilitar o trabalho das pessoas a partir de qualquer lugar e a conexão de diferentes maneiras. O terceiro é força de trabalho em si e a sua diversificação.

Mas tem uma quarta peça que falta na maioria das conversas, que é uma estatística: 80% dos empregos que as pessoas vão ocupar em 2030 sequer existem agora, ou foram criados cinco anos atrás. Achamos que tudo vai acontecer agora, mas esquecemos que, no longo prazo, essas mudanças vão impactar fundamentalmente a maneira como fazemos todas as coisas.

Quando olho para as empresas do nosso portfólio, a Rescale é um bom exemplo. Fomos um dos primeiros investidores institucionais, quase 10 anos atrás. Naquela época, as pessoas começavam a falar sobre nuvem e software, mas não era realmente uma coisa reconhecida. A Rescale foi uma das primeiras empresas a começar a falar sobre computação de alto desempenho na nuvem: se você tem dados maciços para processar, como você processa tudo isso na nuvem? Eles fizeram pitch para centenas de investidores e todos disseram não. Eles pegaram todos os “nãos”, aprenderam com eles e descobriam um jeito mais convincente de contar a história de como esse trabalho seria feito no futuro.

Os clientes iniciais da Rescale estavam no segmento da indústria aeroespacial e da aviação, porque para construir equipamentos enormes precisavam achar jeitos mais eficientes de simular como juntar as peças, usando ambientes virtuais. para selecionar as iterações mais promissoras e aí testar em um laboratório físico, encurtando significativamente o tempo de pesquisa e desenvolvimento. Isso não é um futuro do trabalho em que pessoas normais tradicionalmente pensariam.

A partir daí eles foram expandindo para clientes em outras indústrias, incluindo serviços financeiros. O banco Morgan Stanley é um de seus clientes para fazer simulação financeira em larga escala. Eles acabaram também indo para áreas como a Biofarmacêutica, e foram de grande ajuda durante a pandemia. Várias empresas de capital aberto de biofarma usam a plataforma para encontrar as iterações de medicamentos mais promissoras para testar em um ambiente virtual, separando as melhores para testar em um laboratório físico, e isso novamente reduziu significativamente o tempo de pesquisa e desenvolvimento.

Então, quando penso no futuro do trabalho, sempre pergunto: de que escala e espaço de tempo estamos falando? Estamos falando de mudanças imediatas a curto prazo ou estamos falando de mudanças substanciais na forma como as pessoas realmente farão seu trabalho a muito longo prazo?

Tem muito o que conversar sobre esse assunto, mas acredito que esses são os shifts fundamentais em que é importante pensar. Mas eu queria acrescentar que adoraria que as pessoas se mantivessem continuamente curiosas, porque todas essas novas tecnologias estão se desenvolvendo e mudando tão rapidamente que precisarão de mais e mais pessoas inteligentes para trabalhar nelas. E esse é o meu segundo papel.

Como professora, vejo estudantes entrando em novas indústrias emergentes com idéias e valores mais diferentes do que nunca. Quando penso em tecnologias emergentes como IA e Blockchain, por exemplo, todas elas estão trazendo grandes mudanças na forma como construímos produtos e como atendemos clientes, tanto empresas como pessoas. Mas eu acho que é muito difícil ter uma visão completa de como isso tudo funciona sem que você esteja constantemente curioso e aprendendo sobre as últimas e mais recentes conversas sobre o assunto.”

Como chegar no futuro sem perder a fila

“A primeira coisa é dar um passo atrás e acrescentar um pouco mais de contexto quando falo de um futuro que é muito mais automatizado do que antes. Não estou falando no sentido tradicional de que a automação vai tomar conta dos empregos humanos, mas do que a automação vai fazer com o tempo das pessoas. Na verdade, poderemos ser mais centrados no nosso lado humano, automatizando as partes mais chatas do nosso trabalho, para que passemos mais tempo na empatia criativa e compassiva necessária, nos aspectos da construção do relacionamento pessoal de nossos trabalhos.

É verdade que você poderia ter um bot que automatiza a escrita de notícias, mas isso nunca vai substituir uma conversa como essa, na qual estamos nos conhecendo melhor e onde você é capaz de descobrir informações sobre as quais um bot não seria capaz de escrever.

Portanto, eu acho que a peça de automação é inevitável, mas é centrada no ser humano, e isso significa que precisamos de mais pessoas que sejam políticas e éticas para emergir no setor. E isso se relaciona diretamente à pergunta: será que as empresas deveriam estar pensando mais sobre isso a médio ou longo prazo?

Absolutamente sim. Eu entendo a situação das empresas de ter que olhar para relatórios trimestrais porque, especialmente para as empresas públicas, há uma certa cadência de tempo. Mas eu acho que há um valor enorme quando se olha para empresas que existem há um século. A IBM é um exemplo maravilhoso que existe há mais de um século. Quando você olha para o tipo de lógica que elas aplicam, pensando em novas tecnologias emergentes. e como investem estrategicamente uma parte de seu tempo em novas áreas para pensar a muito longo prazo, isso faz uma enorme diferença.

Quando penso no tipo de etapas pelas quais passamos, é claro que a primeira é tangencial. São nossos mercados existentes, clientes existentes, mas você está apenas expandindo um pouco. Depois você tem todas as laterais e horizontais de coisas novas, para as quais você pode expandir. Seja um novo mercado para clientes existentes, ou um mercado já existente, que atraia novos clientes. Essa é a sua segunda etapa.

A terceira etapa de expansão é verdadeiramente esta transformação a longo prazo, na qual estamos falando de novos mercados e novos clientes. É nesta última categoria que a maioria das pessoas não presta atenção e em que a empresas deveriam estar gastando tempo pensando.

Cada empresa terá sua própria estratégia. Às vezes se trata de ter um departamento de pesquisa e desenvolvimento. Às vezes as empresas dirão que não vão ter P&D, mas vão investir estrategicamente uma parte do dinheiro em fundos de capital de risco, porque isso é quase como uma terceirização da pesquisa e desenvolvimento para todas essas startups que podem ser grandes. Às vezes, é investir nos funcionários. Às vezes, é investir na inovação dentro da empresa e no empreendedorismo. Às vezes, é na forma de ser realmente bom em fusões e aquisições. A Cisco, por exemplo, tem sido muito boa em fusões e aquisições, comprando coisas e trazendo-as para dentro. Portanto, acho que toda empresa deve descobrir dentro dessa fase de transformação qual é sua estratégia claramente definida sobre isso e buscar.”

Como levar todas a pessoas junto

Essa é tanto uma questão do setor público quanto do setor privado. Historicamente, a educação sempre foi uma questão do setor público, mas cada vez mais estamos vendo startups Edtech, ou universidades, que estão sendo mais criativas sobre o tema de treinar e formar pessoas.

Por isso, sinto que o aspecto público disto é fazer o governo, os políticos e os formuladores de políticas públicas pensarem qual o papel que querem desempenhar para conseguir que a população esteja pronta para isso. Mas eu acho que eu tentaria abordar esta questão de uma perspectiva do setor privado. Quais são os modelos de negócios que podem preencher a lacuna?

Investimos em uma empresa que é altamente relevante nesse espaço. É uma startup chamada Woolf. Eles não são uma startup tradicional de educação. Eles estão no segmento de software como serviço (SaaS), mas o que eles fazem é oferecer uma plataforma que permite fazer a creditação de qualquer curso que seja ensinado. Por exemplo, neste momento eu sou professora e o curso que leciono no campus em Berkeley vem com créditos curriculares. Mas se eu der as mesmas aulas fora do campus, mesmo que seja a um quarteirão de distância, em outro local, de repente esse curso não vale nada do ponto de vista de créditos educacionais. Faz muito pouco sentido, não acha?

Essa startup foi a primeira a pensar no assunto e se perguntar: ‘como fornecemos a creditação, sob forma de um software?‘ Qualquer educador poderia decidir sair e dizer, ‘olhe, eu não estou apenas criando conteúdo, mas posso também pensar em desenvolver um currículo onde os alunos possam adquirir créditos‘. E, é claro, do lado dos estudantes, eles poderiam fazer sua própria educação no estilo ‘faça-você-mesmo’. Por exemplo, posso ter algumas aulas em Berkeley, em Stanford, em Harvard, em Yale e combinar essas diferentes turmas para formar uma graduação completa.

Falamos da perspectiva de educadores e de estudantes. Mas e com relação às empresas? Alguém que é realmente bom em branding e marketing, como a Nike, poderia oferecer um MBA com a marca Nike, que tem créditos, para qualquer um possa entrar aprendendo o caminho da Nike e isso poderia ser o melhor tipo de diploma em indústria, marketing e branding.

Você pode ter a AWS que diz ‘olhe, nós já oferecemos os melhores serviços na nuvem, portanto podemos fornecer um mestrado em engenharia. Assim, qualquer um que queira ser engenheiro e computação em nuvem, pode entrar e aprender os melhores caminhos‘. Portanto, é realmente interessante. E aí é claro que vamos precisar que os formuladores de políticas públicas entrem e digam qual é a posição deles, mas eu acho que a Woolf como startup fornece uma perspectiva realmente fascinante de como poderíamos imaginar o mundo.

Dá para ser otimista com o futuro?

Acho que há muitas maneiras de lidar com isso. A razão pela qual estou otimista, honestamente, é por causa das pessoas. Agora que já ensinei por tanto tempo, pensei antes que acabaríamos com uma geração que está tão acostumada a dar seus dados que deixaria de se importar com privacidade. E que estaria tão acostumada à automação que nem pensaria nisso. Mas, na verdade, eu fico realmente otimista quando olho para todos os alunos de graduação que nasceram depois do ano 2000, e que hoje têm 22 anos. Eles estão se formando, entrando na força de trabalho e quando olho para eles, vejo que se importam muito.

Essa é uma primeira geração que só vai trabalhar em empresas que se alinham com seus valores, mesmo que isso signifique aceitar um emprego de menor remuneração, uma coisa que antes não era verdade em nenhuma geração. Eles estão dispostos a sacrificar o salário por missão e visão. Eles se preocupam muito com valores que vão projetar um mundo que seja centrado no ser humano, e que seja melhor.

Outra peça que é importante levar em conta é como cada vez mais empresas estão pensando no que querem ser. Elas precisam atender seus clientes, sejam eles consumidores individuais ou corporativos. E eu acho que as pessoas se preocupam com isso mais do que nunca. Mesmo quando pensamos em IA, não costumamos associar IA à sustentabilidade ambiental, mas agora mais do que nunca tenho estudantes que pensam: ‘este é o algoritmo mais eficiente em termos energéticos que eu poderia estar executando? Posso executar isto em um momento alternativo quando for mais amigável para a energia?’

Elas têm características que procuramos quando olhamos para as startups. E isto novamente volta à missão e à visão. Será que esta missão e visão atraem os melhores talentos? Se não, você perderá os clientes e perderá os talentos.