The Shift

O futuro da China após a retomada da pandemia, segundo Jeffrey Towson

O primeiro país a ser afetado pela Covid-19 está recuperado. É o que revela Jeffrey Towson, professor da Universidade de Pequim e especialista no ecossistema de tecnologia da Ásia.  “Os bancos voltaram a se movimentar, os consumidores estão comprando, o turismo doméstico está acontecendo. Provavelmente não é a informação que chega do outro lado do mundo, mas está tudo bem na China”, diz. “O país vai atingir US$ 1,5 trilhãoem transações digitais este ano. Se você juntar os EUA, Japão, Reino Unido e Alemanha, não chega nem perto”.

Nesta sexta-feira de Black Friday, o professor aponta os motivos por que o Dia dos Solteiros, festival de descontos da chinesa Alibaba, está muito à frente do evento ocidental: foram US$ 74 bilhões em vendas, sem quebrar o sistema de logística e pagamentos. “Acho que deveríamos fazer esse ‘teste de estresse’ em todas as indústrias. As falhas do sistema iriam aparecer”, sugere.

Agora, o momento é o de espalhar as pegadas digitais da China pelo mundo. Com tecnologias como 5G e smart cities, os chineses oferecem inovação e inteligência ao sudeste asiático, à África e, claro, para a América Latina. No contexto global de disputa comercial entre EUA e a China, dois grandes sistemas digitais estão se formando, indica Towson.

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Nessa entrevista ele aborda peculiaridades do que chama de ‘Olimpíadas das Marcas’, os desafios de logística, a chegada do 5G, o despontar da China como meca das cidades inteligentes e muito mais.

“Disrupção é…

O desenvolvimento de um novo ecossistema. Quando uma nova tecnologia com potencial disruptivo emerge, aparecem mais do que novas empresas: surge um ecossistema inteiro. Penso muito sobre isso.

Tome o Google como exemplo. Ele vai além de um motor de buscas online. le é o YouTube, o Android, e muito mais, tudo ao mesmo tempo. É algo que nunca tínhamos visto antes e com que é muito difícil competir. O mesmo vale para a Apple, a Tencent, a Alibaba, e até a Epic Games. No mercado de games, estamos começando a ver estes ecossistemas surgindo com streamings, jogadores, desenvolvedores, motores de criação de jogos e tantas outras coisas. É disruptivo e fascinante.

A China é incrível em desenvolver ecossistemas, e muito dos modelos de negócio daqui também se aplicam na América Latina.

Veja o que a DiDi está fazendo no Brasil por meio da 99. Muitos dos motoristas não são donos dos carros que dirigem, não têm cartão de crédito e por vezes não têm dinheiro para encher o tanque de combustível. O que a empresa faz? Dá a eles um cartão vinculado a uma carteira digital. Quando completa uma corrida, o motorista recebe o pagamento em no máximo uma hora. E aí pode comprar a gasolina.

No lado do e-commerce, estamos vendo uma série de serviços para fortalecer o ecossistema de comerciantes. Imagine um pequeno negócio fundado por três pessoas em Fortaleza que sabem fazer um produto específico. Elas não têm experiência em todas as partes do negócio. Então vem a Alibaba e oferece um sistema operacional digital, um serviço de delivery, uma linha de crédito para fornecedores, pagamento imediato após a compra… Constrói toda uma suíte de soluções para que eles possam competir entre as pequenas e médias empresas do país.

As pessoas na China veem os festivais de compras como símbolo da economia.

Os números do Dia dos Solteiros da Alibaba foram extraordinários, e acho que a população queria que isso acontecesse. É como dizer para o resto do mundo: ‘estamos de volta!’ com US$ 74 bilhões em vendas.

E é fato: os bancos voltaram a se movimentar, os consumidores estão comprando, o turismo doméstico está acontecendo. Provavelmente não é a informação que chega do outro lado do mundo, mas está tudo bem na China. O país vai atingir US$ 1,5 trilhão em transações digitais este ano. Se você juntar os EUA, o Japão, o Reino Unido e a Alemanha, não chega nem perto

Desde o ano passado, o Dia dos Solteiros tem o live streaming como grande tendência. É a intersecção entre vendas e entretenimento.

Vejo isso como a digitalização da maneira como realmente fazíamos compras. As pessoas se reuniam para ir ao shopping, assistir a um filme e fazer compras. Conteúdo e comércio em um mesmo lugar.

Existem dois pontos pouco falados sobre o Dia dos Solteiros que são essenciais para entender a importância desse festival. O primeiro é que nesta data acontecem o que eu chamo de ‘Olimpíadas das Marcas’. Ou seja, não se trata de vender o máximo possível. É sobre apresentar o valor da sua marca. Alcançar novos clientes, lançar novos produtos, coletar dados que vão ajudar na estratégia dos próximos doze meses. É o momento de criar uma reputação. 

O segundo é sobre a prova logística que o festival representa. Essa parte fica nos bastidores e por vezes é ignorada pelos consumidores. Quando se fala em ‘construir uma China digital’, há toda uma infraestrutura por trás. Eles estão colocando robôs nas fábricas, promovendo entrega 24 horas por dia, estabelecendo uma rede segura de pagamentos. 

O ecossistema sabe que, a cada doze meses, a logística inteira passa por um ‘teste de estresse’ profundo. Em um dia, o sistema recebe uma demanda muito maior do que no restante do ano.

Quem trabalha com a infraestrutura por trás do e-commerce precisa garantir que milhões de entregas sejam realizadas no prazo e que milhões de pagamentos sejam processados com sucesso. O que mais me impressiona é que o sistema não quebra. Os streamings ficam no ar, os pagamentos são feitos e os pacotes chegam no prazo estabelecido. 

Acho que deveríamos fazer esse ‘teste de estresse’ em todas as indústrias. Imagine se a cada ano no Brasil houvesse um dia em que todos o setor bancário tivesse uma demanda cem vezes maior do que a normal. Tenho certeza que muitos sistemas iriam quebrar e as falhas iriam aparecer. 

A disputa comercial dos EUA com a China vai se manter no status quo.

Parece que a única coisa com que Democratas e Republicanos concordam é em relação à China. Não se vê uma voz dissidente. Por isso, não acredito que este cenário deve mudar quando o Biden subir ao poder. 

No meio desta tempestade política, está a Huawei. Existe uma desconfiança em alguns lugares em relação a ela. Mas é uma empresa espetacular. Em 2019, a Huawei investiu US$ 18 bilhões em pesquisa e desenvolvimento. Eles têm 80 mil engenheiros. Está entre as mais inovadoras em tecnologia e lidera o desenvolvimento do 5G no mundo. 

O 5G, por exemplo, está criando um efeito de ‘corrida do ouro’. Vai emergir uma nova onda de gigantes. Quem chegar lá primeiro ganhará em escala.

Aconteceu a mesma coisa com o 4G. Começamos a ver vídeos no YouTube e no Netflix como se não houvesse amanhã. Eles foram os primeiros a realmente capitalizar em cima do 4G e colocaram os EUA na liderança dessa tecnologia. Agora, o 5G está sendo adotado antes na China, no Japão e na Coreia do Sul. Será que destes lugares vêm a próxima geração de gigantes? 

Primeiro, precisamos descobrir qual é o grande caso de uso do 5G. Muita gente aponta a mobilidade, por conta da baixa latência da rede. Em carros autônomos, baixa latência significa menor tempo de resposta e menos acidentes. Mas eu acredito que a tecnologia para carros autônomos em si vai demorar muito mais para ser comercializada que o 5G. 

O mundo já reconhece a China como líder em e-commerce e pagamentos digitais. Daqui a dois anos, o mesmo vai acontecer com smart cities.

Mais de 500 projetos estão sendo desenvolvidos, coordenados entre o governo e quatro grandes empresas de tecnologia do país.

As cidades inteligentes são pensadas em três níveis.  O primeiro é a infraestrutura inteligente. É a combinação entre a capacidade de construção civil no país e os softwares das companhias tech. Sensores, câmeras, drones coletam dados sobre tudo o que acontece numa cidade, e os algoritmos de IA tomam ações. Por exemplo, uma rede de semáforos inteligente analisa dados em tempo real, redireciona a rota dos veículos para desafogar o trânsito ou diminui o tempo de trajeto de uma viatura de polícia em situação de emergência. 

O segundo nível é o cidadão. Estamos falando de uma população digital que também pode coletar dados. A cidade gamifica a cidadania: quem tirar uma foto geolocalizada de um semáforo quebrado recebe pontos e trocar por prêmios. É uma forma de engajar as pessoas com a cidade. 

Por último está a criação de um ecossistema de desenvolvedores. Quando você olha para uma cidade inteligente, percebe que se assemelha a um sistema operacional. Ao abrir o próprio código, a cidade convida os desenvolvedores a criar aplicativos que funcionem nela. E aí passam a surgir as mais diversas soluções inovadoras: um software para a limpeza de parques, uma rede social para atividades culturais, um app de segurança, por exemplo. 

A verdade é que hoje nossas cidades são burras.

Os sistemas de água e de energia tradicionais geram desperdício. Com dados, é possível direcionar os recursos em tempo real para onde realmente vão ser consumidos. A mesma coisa vale para os ônibus: eles realmente precisam fazer a mesma rota sem parar? Não seria mais inteligente que o trajeto fosse definido por um algoritmo que sabe onde os passageiros estão e para onde vão? 

Hoje, a Alibaba tem a versão 2.0 do City Brain, um sistema inteligente que coleta dados e controla todos esses serviços de smart cities. É um produto que já está sendo oferecido para outras cidades no mundo. Claro que há diversas questões de privacidade envolvidas. Mas se coloque no lugar de um prefeito: não parece um bom negócio?  Ou sua cidade teria capacidade de gerar um sistema tão inteligente sozinha?

Há muito em comum entre o sudeste asiático e a América Latina. Basicamente todas as soluções que vem da China são aplicáveis nessas regiões. Por isso, meu principal conselho para empreendedores brasileiros é estudar os modelos de negócio chineses e copiar dos ganhadores. Há uma tonelada de empresas a serem copiadas. 

A China digital é um palco de testes, e estudar este mercado pode indicar o que vai funcionar e o que deve falhar no Brasil”.