The Shift

Mobilidade urbana no Brasil: dilemas e possibilidades

Metrô de São Paulo fora do horário de pivo

Falar de transporte em um país com uma área de 8.516.000 km² é, certamente, falar de múltiplas realidades. “Existem diferentes desafios para os quais precisamos olhar, tanto em relação às características da própria cidade, quanto às dificuldades que essa cidade encara”, diz a diretora executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, Clarisse Linke.

Para entender melhor, é preciso refletir sobre o nosso país. No Brasil, nada é padronizado, tudo foi se moldando a partir de características únicas em cada região, cada estado, cada cidade. “No Brasil, nós temos muitas cidades universitárias. Temos cidades em que a população está envelhecendo, especialmente no interior – que sistema vai atender com qualidade a essa população? – e podemos, inclusive, falar das cidades pequenas, locais em que historicamente se usa mais a bicicleta, mas onde vemos que, especialmente na última década, a bicicleta vem perdendo espaço para motos e carros”.

Esse olhar direcionado para cada uma das particularidades locais será sempre o ponto de partida para um planejamento eficiente de mobilidade urbana. Porque não adianta simplesmente copiar iniciativas interessantes como Paris, ‘a cidade de 15 minutos’, ou Melbourne, ‘a cidade de 20 minutos’, como diz Clarisse. Nas duas cidades, antes da pandemia, as prefeituras estimulavam a criação de “centros locais”, para que as pessoas pudessem se deslocar para seus afazeres a pé ou utilizando bicicleta, gastando poucos minutos.

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“Esse é, realmente, um conceito importante”, comenta Clarisse. A questão não seria apenas de vontade para replicar o modelo. “Na América Latina, e em particular no Brasil, temos regiões metropolitanas extremamente desiguais, uma desigualdade territorial mesmo”, diz a especialista. “Temos bairros muito ricos, enquanto outras áreas que poderiam ser ‘centralidades locais’ têm uma ausência de infraestrutura e de oportunidades econômicas – o que provoca um grande fluxo de passageiros diários vindo para as áreas centrais”.

Dados do último Censo do IBGE, compilados pela plataforma mobiliDADOS, indicam que a maior parte dos munícipes que gastam mais de uma hora se deslocando entre casa e trabalho vivem em regiões metropolitanas. E nas nove regiões metropolitanas que são especificamente observadas pela plataforma (Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Distrito Federal, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo), 38% das pessoas ocupadas trabalham fora do seu município.

Esse deslocamento não tem nada de rápido e confortável – longe disso. Dados do Summit Mobilidade Urbana 2019 apontam que os brasileiros perdem 2h07 minutos por dia em seus deslocamentos, totalizando impressionantes 32 dias ao ano. Muitos desses brasileiros passam esse tempo em um transporte público lotado. No contexto da pandemia, esse cenário se torna ainda mais desesperador, com a proibição das aglomerações e os deslocamentos dificultados. Então, o que fazer?

O transporte público de média e alta capacidade no Brasil

Um dos mais detalhados estudos sobre mobilidade no país foi encomendado pela Confederação Nacional da Indústria em 2015. O levantamento identificou que um em cada quatro brasileiros – 25% da população – vai ao trabalho ou escola utilizando como modal o ônibus.

Dados mais específicos de São Paulo, maior cidade do país, ilustram o tamanho do desafio no que diz respeito ao transporte público: as linhas do metrô e da CPTM transportam mais de 8 milhões de passageiros todos os dias, e os ônibus, por volta de 8,8 milhões de passageiros ao dia.

Dessa forma, um país populoso e repleto de regiões metropolitanas torna necessária a existência de sistemas de transporte de média e alta capacidade. Esses sistemas incluem corredores com prioridade de passagem nas vias, que garantem o transporte de grande quantidade de passageiros com agilidade – podendo ser BRTs, VLTs ou Monotrilhos, e ainda corredores de metrôs, trens e barcas que atuam inteiramente em área urbana com espaçamentos entre estações menor do que 5km, funcionamento entre 6h e 22h e intervalo médio de 20 minutos.

“Depois da mobilidade ativa, que é caminhar ou usar bicicleta, o que de fato impacta positivamente a mobilidade é o transporte público”, afirma Sergio Avelleda, coordenador do Núcleo de Mobilidade do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e diretor de Mobilidade Urbana da WRI Ross Center For Sustainable Cities. Como ex-secretário dos Transportes da cidade de São Paulo, ele defende a priorização do transporte público no espaço urbano, devidamente integrada a outros modais, e a grande promoção da mobilidade ativa. “É preciso repensar a mobilidade para que ela deixe de ser individual e seja feita através dos sistemas públicos de transporte”.

De acordo com o ITDP, atualmente temos no país cerca de 1.200 km de corredores de transporte de média e alta capacidade, que operam em 58 cidades do Brasil. “O nosso entendimento é que, considerando as cidades com mais de 500 mil habitantes no Brasil, a gente precisaria triplicar essa rede de transporte público existente”, enfatiza a diretora executiva do ITDP, Clarisse Linke. Ela entende que o número atual não é satisfatório, principalmente diante de “regiões metropolitanas muito espalhadas”. “Temos uma periferia pobre que precisa vir aos centros para trabalhar. E aí, à medida que não tem um transporte público de qualidade, as pessoas acabam por se endividar ao comprar carro e moto”, diz.

Micromobilidade e sustentabilidade em foco

Essa transição para o transporte individual motorizado escancara alguns dos maiores dilemas do transporte público brasileiro, e que foram intensificados com a chegada da Covid-19. No Distrito Federal, motoristas, passageiros e cobradores ainda corriam risco de contágio, mesmo com sistemas de higienização. Em São Paulo, bairros periféricos que apresentaram maior número de internações coincidiram com aqueles em que os moradores não puderam permanecer em casa durante a quarentena, de acordo com levantamento do Labcidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Além disso, até o final de agosto, mortes por Covid-19 subiram 42,3% entre motoristas e cobradores.

“O transporte público já vinha perdendo passageiros no Brasil. Na última década e meia, já víamos um aumento da taxa de motorização e uma perda de passageiros de um modo geral, principalmente nos sistemas de ônibus”, relata Clarisse. Segundo ela, a pandemia fez com que as pessoas, para se proteger, tivessem que procurar modos de transporte que não fossem por lotação. “O modelo de transporte brasileiro depende da lotação. É um modelo que depende da tarifa para viver”.

Ainda que não estivesse nos planos, a pandemia forçou as instituições e as pessoas a revisitar as formas de transporte de massa e rever o marco regulatório de transportes no Brasil. “Nós do ITDP continuamos entendendo o transporte público como sendo fundamental e prioritário para o futuro das cidades, e paralelamente, é preciso pensar em estratégias para desafogá-lo”.

É nesse contexto que ganha força a micromobilidade. Patinetes, bicicletas, patins e andar a pé podem ajudar a cumprir rotas sem colocar mais peso no trânsito. E não promovem aglomeração. “Mais bicicletas e patinetes é a resposta dos centros urbanos aos tempos de pandemia, mas será preciso ir mais longe para os hábitos se enraizarem nas rotinas diárias”, disse o economista inglês John Siraut, durante o Portugal Mobi Summit, em setembro. Ele entende que o desafio para as cidades é a ampliação de infraestruturas para os modos de transporte mais leves e restrição na circulação de carros. “Do que precisamos é de mais espaço para pessoas e não para os veículos”.

Encontrar uma forma de integrar sistemas de transporte coletivo e micromobilidade é, efetivamente, a reflexão de muitos estudos e pesquisas na área de mobilidade urbana. A principal conclusão do City Mobility Index 2019 (Índice de Mobilidade Urbana) desenvolvido pela consultoria Deloitte, que analisou a mobilidade em 55 cidades do mundo, foi de que aquelas que apresentaram resultados melhores na qualidade do transporte foram as que privilegiaram a integração entre diferentes modelos, combinando transporte ativo com transporte público.

Vale ressaltar, ainda, outra perspectiva essencial quando pensamos nesse redesenho da mobilidade: sustentabilidade. A diretora executiva do ITDP, Clarisse Linke relembra que, em oposição aos carros e motos, a priorização do uso do transporte público e a intensificação da bicicleta e da mobilidade ativa são as melhores estratégias para a consolidação de uma cidade limpa, de baixo carbono e segura.

“A questão é que o deslocamento por transporte individual motorizado não só contribui diretamente para todas essas questões atuais de poluição, de emergência climática e de congestionamento, como também interfere na falta de segurança viária – a gente tem 42 mil pessoas ao ano morrendo no Brasil como resultado de acidentes evitáveis”, enfatiza a especialista.

Com isso, a solução passa por repensar a nossa própria relação com as ruas e o espaço urbano como um todo. “A gente tem que sair desse status quo em que a aceitamos que o carro é que tem a prioridade na via”, destaca Clarisse. “A rua, o espaço viário, é um ativo de toda a cidade, de todos os cidadãos. A gente precisa rever a distribuição desse espaço, para que todos os usuários possam utilizá-lo com segurança, conforto e conveniência”.