A DNA Capital liderou a criação de um fundo de R$ 300 milhões dedicado à Memed. Na prática, o investimento visa adquirir antigos acionistas e realizar novos aportes na companhia. O movimento ocorreu depois que a startup de prescrição digital teve um 2020 muito bem sucedido. A pandemia impulsionou os negócios da empresa, assim como fez com todo o setor de healthtechs. Com uma doença assombrando a população global, as startups do setor de saúde provaram seu valor, algumas em tempo recorde. Mas esse interesse vai se manter daqui pra frente? A expectativa é que sim.
A era pós-coronavírus é vista como o começo de uma oportunidade para os interessados no setor e não como o fim de uma bolha causada pela Covid-19, como apontam investidores entrevistados pela Deloitte.
No Brasil, a compreensão é de que a pandemia acelerou a velocidade de adoção das soluções criadas pelas healthtechs. Ricardo Moraes, um dos cofundadores da Memed, resumiu as expectativas para o futuro dos investimentos no mercado em uma frase: “Tinha uma fresta da porta aberta e ela foi escancarada. A maior parte das healthtechs do setor explodiu no último ano”.
A necessidade por soluções digitais para o setor fica clara com a demanda pelo serviço da Memed. Nos últimos 12 meses, o volume de prescrições digitais na plataforma cresceu 400%. Entre março e junho de 2020, a startup saltou de zero para 30 mil farmácias que aceitavam as suas receitas digitais. Atualmente, são mais de 2,5 milhões de prescrições mensais, num crescimento de 15% ao mês.
Segundo o sócio da DNA Capital, Luiz Henrique Noronha, o mercado de saúde no país é grande e possui espaço para o investimento em inovação. A tendência de investimento em healthtech deve continuar mesmo se outra onda chamar a atenção dos investidores no futuro.
“No final de 2018 para 2019 já existia uma atenção para o setor, mas a pandemia apontou o holofote na direção das healthtechs. Foi mostrado que o segmento precisava de investimento e tinha muito para acontecer. Ainda ocorreu uma explosão de demanda pelos serviços dessas startups devido a uma mudança de hábito para se adaptar ao isolamento, com movimentos como as teleconsultas”, afirma Noronha, em entrevista exclusiva à The Shift.
Os dados corroboram a visão de Moraes e Noronha. Somente em janeiro e fevereiro, segundo a Distrito, foram investidos mais de US$ 90 milhões em healthtechs brasileiras, o que corresponde a cerca de 85% do total registrado em 2020. E olha que o ano passado foi líder em número de deals. Caso o cenário de investimentos se mantenha, a expectativa da Distrito é que o setor feche o ano com mais de US$ 200 milhões, ultrapassando 50 rodadas de investimento.
Globalmente, os resultados de financiamento no setor de saúde também atingiram recorde no primeiro trimestre de 2021 ao alcançar US$ 31,6 bilhões, de acordo com a CB Insights. No mesmo período, foi registrado o recorde de 96 mega rodadas (com valores acima de US$ 100 milhões).
Mercado difícil
A saúde era vista como um mercado difícil por ser muito regulado e demandar um conhecimento específico. Esse combo afugentava parte dos investidores. Agora, o afrouxamento da regulação para atender as demandas da pandemia também impulsionaram o interesse do mercado.
Em março de 2020, por exemplo, a telemedicina foi regulamentada de forma excepcional durante o período de pandemia. É esse o ponto de inflexão, em que os clientes testam a inovação e passam a aderir. Então, são abertas as portas para a consolidação de novas funcionalidades no setor. Uma pesquisa realizada pela Memed com os usuários da plataforma mostra que 100% dos médicos ouvidos querem que o uso da receita digital continue após o coronavírus. Já 93% das drogarias parceiras desejam continuar recebendo as receitas digitais.
“Há uma mudança de hábito. Antes da pandemia, nós tínhamos dificuldade de ganhar escala porque as farmácias não queriam aceitar as receitas. Uma vez que esse limite é estendido, as pessoas sentem os benefícios da solução”, afirma Moraes, em entrevista exclusiva à The Shift.
A manutenção das soluções ampliadas pela pandemia também podem trazer benefícios monetários. Segundo o relatório “The Doctor is Always In: How Teleconsultations Improve Patient Care“, da Juniper Research, o cuidado virtual com a saúde pode gerar uma economia de cerca de US$ 21 bilhões para o setor global de saúde nos próximos quatro anos. Em outra análise, a consultoria também estima que o número total de teleconsultas no mundo deverá chegar a 765 milhões em 2025, um ganho na comparação com os 348 milhões de 2020.
Para ter sucesso no setor, a Deloitte aponta que as healthtechs devem enfrentar alguns desafios:
- À medida que as tecnologias evoluem rapidamente e se tornam básicas para o setor, os inovadores terão sucesso se tiverem modelos de negócios ágeis e capacidade de escalabilidade. Uma proposta de valor vencedora hoje pode se tornar apenas “mais uma” amanhã. Os inovadores devem estar prontos para conduzir rapidamente as mudanças tecnológicas e mostrar valor aos clientes.
- Os inovadores que vendem para companhias incumbentes frequentemente encontrarão longos ciclos de vendas e desafios de fluxo de caixa. Liderança de vendas, parcerias de canal e criação de um ecossistema de mercado podem ajudar a encurtar os ciclos de vendas e aliviar as preocupações dos investidores e do mercado sobre o fluxo de caixa. Os inovadores também devem estar atentos ao preço de suas soluções, mesmo com um cliente âncora inicial. Reduzir seu valor no começo pode dificultar a lucratividade a longo prazo.
- Embora o ambiente regulatório atual seja encorajador, com o relaxamento dos regulamentos para encorajar a saúde virtual e a orientação sobre regras de interoperabilidade, incertezas de curto e longo prazo podem existir já que as situações em torno da pandemia e de outras atividades de mercado ainda podem evoluir. Os inovadores devem permanecer cientes e capazes de se adaptar às mudanças.
Tecnologias do futuro
O Brasil precisa digitalizar a jornada do paciente e do médico e é nesse sentido que precisa caminhar o setor nos próximos anos. As tecnologias mais sexy, como a aplicação de Inteligência Artificial (IA) para ajudar na leitura de exames radiológicos devem chegar, mas o desafio primordial é a digitalização do setor. A atenção dos investidores para as healthtechs deve ajudar nesse processo de deixar as experiências analógicas mais de lado.
Com a digitalização, mais dados são produzidos e essas informações podem não só apoiar o tratamento médico, mas também empoderar os pacientes. “Os dados podem ser tratados com algoritmos de IA e Machine Learning para ajudar o sistema. Tem ainda um espaço grande para o paciente ficar mais empoderado na saúde e poder tomar melhores decisões no dia a dia”, afirma Luiz Henrique Noronha.
A inovação pode e deve ampliar o acesso aos serviços de saúde, inclusive no SUS. Na visão de Moraes, outro problema é que as tecnologias aplicadas ao setor são muito pensadas para os donos das instituições de saúde, não para os médicos e pacientes. “Não se entendia a dor do médico, o que fez com que muitos profissionais pegassem ojeriza das ferramentas digitais”, complementa o cofundador da Memed.
Também há um interesse em inovações que usam automação e robótica combinados com Inteligência Artificial e Machine Learning, segundo os investidores entrevistados pela Deloitte. Eles ainda acreditam que os modelos de negócios disruptivos e escaláveis capazes de mostrar um retorno de investimento terão mais sucesso. A IA e o ML também devem se mostrar imprescindíveis para o setor.
Uma das healthtechs que utilizam IA e teve um papel importante durante a pandemia é a Hilab. A startup de Curitiba criou um mini laboratório, que alia tecnologias como a Inteligência Artificial e Internet das Coisas (IoT) ao conhecimento dos profissionais de saúde para garantir o resultado rápido e confiável dos seus testes. Com isso, a empresa foi uma das primeiras a desenvolver o teste rápido para detectar o coronavírus. Há um ano, a companhia colabora com o Instituto Butantan. A parceria já resultou no desenvolvimento de 18 projetos, incluindo auxílio no estudo em Serrana (SP) com o imunizante Coronavac. Ao lado da Memed, a Hilab já participou do podcast da The Shift sobre a nova medicina, quando ainda se chamava Hi Technologies.
No mercado global, as aplicações de IA na saúde têm chamado atenção dos investidores — o ramo bateu um recorde de aportes de quase US$ 2,5 bilhões no primeiro trimestre de 2021, aponta a CB Insights. Os destaques vão para a automação do backoffice e a parceria de empresas especializadas com a Big Pharma para o descobrimento e a criação de novas drogas.
O relatório da CB Insights ainda indica que as companhias de telessaúde arrecadaram US$ 4,2 bilhões no primeiro trimestre de 2021. Seis empresas do nicho se tornaram unicórnios. No período, os setores de saúde mental, saúde da mulher e TI em saúde também registraram saldos positivos ante os três últimos meses de 2020. Já a área de dispositivos médicos e ômica tiveram baixas na mesma comparação.
Case da Memed
O investimento na Memed foge do padrão por agrupar R$ 300 milhões em um fundo voltado para apenas uma empresa. Segundo as fontes da DNA Capital e da própria startup, o processo aconteceu depois da companhia ter recebido uma série de ofertas de aquisição não solicitadas e propostas de fundos para novas rodadas. Então, a DNA, que já tinha participação na empresa, lançou a ideia.
“Era o melhor desenho porque resolvia vários problemas. Dava liquidez para os fundos, que estavam conosco há bastante tempo e iam ter que acabar entrando em um período de desinvestimento. Ao mesmo tempo, nos livrava dessa eterna busca de levantar rodadas e rodadas de investimento. Ainda fazia sentido para os fundadores, que queriam se mover para o lado mais estratégico do negócio”, explica Moraes. A Memed continua operando de maneira independente.
Noronha afirma que a sugestão da DNA partiu da compreensão de que a empresa ainda tinha “muita lenha para queimar”. O investimento é pensado em longo prazo. “O modelo tinha que ser dessa forma porque apenas um fundo de Venture Capital não teria conseguido montar uma operação como essa. Precisamos montar um veículo específico para comprar as participações dos acionistas e poder injetar mais capital na companhia”, informa o sócio da gestora de VC e private equity.
O processo acontece em duas etapas. A primeira, a aquisição dos antigos acionistas, está finalizada. A última, que está sob análise do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), é a entrada de novos investidores na empresa junto com a DNA. “É quase como se tivesse saído uma parte dos acionistas e entrado novos”, resume Noronha.
O nome dos novos investidores ainda não podem ser divulgados, mas alguns deles vão integrar o board da startup. Os fundadores deixam seus cargos no dia-a-dia da companhia e migram para o comitê executivo. O executivo e empreendedor Joel Rennó Jr vai ocupar o posto de CEO.
A empresa mantém os produtos e modelos de parceria oferecidos atualmente, mas quer expandir e criar um marketplace. Para isso, o atual time de 50 pessoas vai triplicar nos próximos três meses.
“Focamos muito na ponta do médico. Agora, estamos olhando como ajudar o paciente a aderir ao tratamento prescrito. Como ele pode comprar e tirar dúvidas sobre os medicamentos. Também podemos ajudar a agendar um exame. A forma de fazer isso é com um marketplace para a pessoa saber os preços dos remédios nas farmácias mais próximas, comprar online e, até mesmo, fazer um pedido ao sair do médico e receber ao chegar em casa”, afirma Ricardo Moraes.