Imagine a seguinte situação. Um caminhão estava carregando muitas toneladas de madeira. De repente ele perde o freio e atropela um carro – várias pessoas morrem. Depois do ocorrido, peritos começam a analisar qual seria a causa do acidente.
Uma vez que é indiscutível o fato de que o caminhão não pôde ser freado, os peritos voltam a sua atenção desde o primeiro momento para o próprio freio e para as questões que poderiam ter levado ao seu mau funcionamento, como falta de manutenção etc.
O trabalho de análise sobre as causas não pode parar por aí. Por uma série de motivos, o trabalho precisa ser exaustivo. Todas as causas, até mesmo aquelas bem pouco relevantes ou bastante indiretas, precisam ser incluídas na lista.
Uma dessas causas secundárias pode ser a falta de visibilidade por parte carro que foi atingido. Afinal, um carro com vidros e espelhos sujos possui uma chance significativamente maior de se envolver em um acidente.
Muito bem. Todas as causas que se encontram na lista podem (e devem) ser verdadeiras. No entanto, nem tudo aquilo que é verdadeiro é também relevante.
Para fins legais e burocráticos, a lista toda pode ser importante. Em termos práticos, apenas os motivos que podem ser encontrados no topo da lista realmente importam – no nosso caso, o freio e questões relacionadas a ele.
Ou seja, o acidente foi causado pelo freio. Ponto final. Detalhes adicionais só podem ser do interesse de especialistas. Para todos os outros, a menção à toda extensa lista de causas poderá ser motivo de mais confusão do que de clareza.
Mas o que esse papo de caminhões, freios e retrovisores tem a ver com startups, inovação ou mesmo com as empresas que estão no título deste artigo? Tudo a ver. O que eu vou tentar mostrar neste artigo é que há muitas empresas que andaram passando por uma situação análoga ao nosso caso do carro que foi atropelado por um caminhão na ribanceira.
Vamos ver o caso da BlackBerry.
A gigante canadense de celulares poderia ter tomado decisões que manteriam a sua posição de destaque no mercado de celulares?
Os gurus da inovação vivem dizendo que sim. De acordo com eles, faltou visão, ousadia e sobrou comodismo por parte das suas lideranças – e por isso, a empresa foi caindo ano após ano.
Será que é isso mesmo? Não há dúvida de que, no primeiro momento, o grande vilão da BlackBerry foi o iPhone. Mas será que eles poderiam ter tido “mais visão” e criado um iPhone mais ou menos na linha do que a Apple fez?
Lamento informar aos gurus do pensamento fora da caixa, mas seria quase impossível isso acontecer na realidade.
Pode parecer estranho, mas a BlackBerry não estava tão bem-posicionada assim para continuar liderando o mercado durante a próxima geração de celulares.
Explico melhor. Sem dúvida a BlackBerry era uma das melhores empresas do mundo em desenvolvimento e fabricação de telefones celulares – mas o que a Apple veio a criar não era bem um telefone celular, apesar de ter dado o nome de iPhone ao seu produto.
Na realidade, a Apple não criou um novo tipo de celular, eles criaram um computador – e não, isso não é apenas um preciosismo semântico.
Computadores, ao contrário de outros aparelhos eletrônicos, funcionam de uma forma extremamente flexível. Computadores podem rodar softwares (ou aplicativos) dos mais variados tipos. Os outros aparelhos eletrônicos executam apenas as funções para as quais eles foram projetados.
A troca dos celulares tradicionais (feature phones) por smartphones não foi outra coisa senão a troca de aparelhos eletrônicos com propósito específico para computadores de propósito geral.
Adivinhe qual empresa tinha maior competência em projeto e fabricação de computadores, Apple ou BlackBerry? Sem dúvida, a Apple que já vinha fabricando computadores desde o final da década de 1970.
Daria para a BlackBerry se adaptar? Sinceramente, eu acredito que não. Afinal, de repente as suas habilidades se tornaram pouco relevantes e as competências durante conquistadas por uma outra empresa passaram ser o que realmente importa.
A queda da Kodak apresenta características semelhantes. Um belo dia toda sua competência na área química se tornou irrelevante. O que passou a valer foi a competência e o nível de adequação de cada modelo de negócios para projetar e vender aparelhos eletrônicos.
Apesar de ter previsto com uma precisão impressionante tudo o que viria a acontecer na indústria de fotografia, a Kodak não foi capaz de fazer a transformação. Mas é claro que não! O negócio a ser criado deveria ser tão diferente do negócio anterior que esse processo iria parecer mais com uma completa substituição de um negócio por outro do que realmente uma transformação.
O que faltou a essas empresas não foi a visão do que iria acontecer. O que faltou foi a visão sobre o quão bem as suas características as posicionavam para esse novo momento de mercado. Faltou a compreensão de que situações de mudança desse tipo, a transformação pode não ser possível – ou mesmo se for possível, pode ser tão cara, complexa e arriscada que talvez ela não valha a pena.
Em uma análise detalhada, sem dúvida iremos encontrar falhas na análise de cenário destas empresas. Ninguém é capaz de prever ou executar com total perfeição.
No entanto, quando tem um caminhão vindo sem freio em sua direção, o que uma visão realmente clara da situação deveria te indicar é que a melhor opção é tirar o seu carro do caminho e tentar encontrar uma outra saída – mas essa é uma realidade pesada, dura e que guru nenhum vai querer te contar.