A Inteligência Artificial — especialmente na forma de agentes autônomos — entrou no coração dos fluxos de trabalho corporativos. O que está em jogo agora é mais profundo: software virou mão de obra. Essa fusão desafia todos os manuais de precificação que guiaram a indústria nas últimas duas décadas. O SaaS nos ensinou a cobrar por assento. A nuvem trouxe o “pay as you go”. O streaming consolidou o preço fixo ilimitado. Nenhum desses modelos, porém, responde a um cenário em que um algoritmo substitui, complementa ou amplia a capacidade humana de gerar valor.
O problema começa nos custos. No software tradicional, o custo marginal de adicionar um usuário era próximo de zero. Esse truque econômico sustentou margens gordas no SaaS. Com a IA, a equação mudou: cada execução tem custo variável — GPUs, energia, tokens, tempo de computação, chamadas a modelos de terceiros. Não falamos mais de licença ou API, mas de trabalho digital com custo real.
Não é só software. É redefinição do que é trabalho, de quem paga por ele e de como se mede valor. Se você ainda acha que “IA é só mais uma licença”, já ficou para trás.
O caso da Replit é ilustrativo. A empresa cobrava US$ 0,25 por tarefa de codificação resolvida por seu agente de IA. Ao lançar uma versão mais potente, capaz de executar tarefas longas e complexas, os custos dispararam. Resultado: migração para precificação baseada em esforço computacional, com tarefas chegando a custar até US$ 2. Os clientes reclamaram, mas a alternativa era manter margens negativas. O Cursor, rival na mesma categoria, seguiu caminho semelhante: abandonou o plano ilimitado e passou a cobrar por consumo, enfrentando resistência de usuários que se sentiram traídos por contas inesperadas.
A lição é dura: IA não escala como SaaS. E os clientes estão descobrindo isso da pior forma — via faturas salgadas.
Diante desse cenário, diferentes modelos de cobrança começam a competir:
- Por agente/assento (substituição de FTE): trata o agente como colaborador digital, com custo fixo mensal. Simples e previsível, mas pouco alinhado ao valor real.
- Por ação/tarefa: pagamento por execução. Transparente e flexível, ideal para uso variável. O risco? Commoditização.
- Por fluxo de trabalho/função: preço para uma função inteira de ponta a ponta. Transparente para engenharia e finanças, mas difícil de prever em casos complexos.
- Por resultados: o “santo graal”. Alinha custo ao ROI. Atraente para o cliente, mas exige confiança e atribuição robusta.
- Por uso/token: baseado no volume processado. Granular, mas difícil de orçar. Mas já em uso há pelo menos um ano por empresas como Adobe, Apollo, Asana, Atlassian, bolt.new , Clay, HubSpot, Globant, Google, Lovable , monday, Replit , v0 e muitas, muitas outras.
Essa transição já está em movimento:
- A Microsoft estruturou três degraus: entrada gratuita (Copilot Chat) para aprendizado organizacional; agentes cobrados por uso em casos específicos; e assinatura quando o ROI já está claro. Foco em flexibilidade, escalabilidade e custo/eficiência.
- A Salesforce fixou US$ 2 por conversa no Agentforce e, em maio, lançou os Flex Credits para casar consumo com resultados — sinal de que o mercado começa a precificar ações e outcomes, não só acesso.
- A Globant lançou AI Pods: assinatura com token budget para engenharia e design, aproximando consultoria do modelo “streaming”.
- Replit e Cursor migraram para pricing por esforço computacional, defendendo margens mesmo à custa de clientes insatisfeitos.
Madhavan Ramanujam, autor de Monetizing Innovation, sugere começar pelo diagnóstico: quanta autonomia sua IA realmente tem e quão mensurável é o valor que gera? Sua matriz é clara:
- Baixa autonomia + baixa atribuição: software assistivo, precificado por usuário (Slack, Figma, Grammarly).
- Baixa autonomia + alta atribuição: terra dos copilotos, com outputs mensuráveis (Cursor, Clay).
- Alta autonomia + baixa atribuição: infraestrutura essencial, precificada por uso (AWS, Twilio).
- Alta autonomia + alta atribuição: o futuro desejado — agentes autônomos que entregam ROI comprovado. Hoje, só 5% das empresas estão aqui. Até 2028, a projeção é 25–30%.
Esse mapa é mais que teoria: é uma bússola para definir não só como cobrar, mas como contar a história de valor ao cliente.
O lado invisível dessa história é social e regulatório. Comparar humanos e agentes em planilhas cria a ilusão de eficiência. Um atendente humano pode custar US$ 75 mil/ano; um agente, US$ 55 mil. Mas o cálculo ignora diferenças críticas: flexibilidade, erros em casos complexos, tempo de implementação, riscos regulatórios.
“Pior: agentes estão sendo implantados de forma furtiva — em back-office, atendimento, fluxos de dados — transformando empregos em microtarefas de software sem que os trabalhadores percebam. É o risco do dumping algorítmico: trabalho tratado como software, sem proteção trabalhista e sem transparência.
A lógica é conhecida no mercado global: competir derrubando preços até o limite da sobrevivência. A diferença é que, desta vez, a disputa não ocorre entre países ou cadeias produtivas, mas entre humanos e algoritmos, em planilhas que reduzem trabalho a tokens ou chamadas de API. O resultado é uma corrida para baixo em que eficiência é maximizada às custas de previsibilidade, direitos e confiança.
O dilema agora é outro: quem define o preço do trabalho digital — e com quais garantias de equidade?”
Inovar em precificação pode ser arma contra incumbentes lentos. O Google hesitou em IA para não canibalizar seu negócio de anúncios. Startups aproveitaram a brecha para atacar com modelos mais flexíveis e narrativas mais ousadas. Mas atenção: preço não é defesa, é ataque. Pode abrir portas, mas concorrentes copiam rápido. O verdadeiro fosso competitivo continua sendo construído em torno de dados proprietários, efeitos de rede, embedding profundo e marca.
Estamos em fase de experimentação. O manual ainda está sendo escrito. Cada empresa tenta converter trabalho algorítmico em contrato comercial à sua maneira.
No fundo, precificação é narrativa e poder. Preço não é tabela: é história de valor, traduzida em ROI auditável e contratos que deem previsibilidade ao CFO. Quem dominar essa arte — e escrever o manual antes dos outros — não só monetizará melhor, mas definirá o padrão de precificação do trabalho no século XXI.