Quase dois anos após publicarmos, aqui na The Shift, o desejo da Brasscom de encaminhar ao governo uma proposta para que o país tivesse uma política nacional de IA, alinhada com o Plano Nacional de IoT – e mais de um ano desde o lançamento de uma consulta sobre o plano, iniciada no final de 2019 – o governo brasileiro lançou, na última semana, a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (IA).
Os objetivos declarados? Contribuir para a elaboração de princípios éticos para o desenvolvimento e uso de IA responsáveis; promover investimentos sustentados em pesquisa e desenvolvimento em IA; remover barreiras à inovação em IA; capacitar e formar profissionais para o ecossistema da IA; estimular a inovação e o desenvolvimento da IA brasileira em ambiente internacional; e promover ambiente de cooperação entre os entes públicos e privados, a indústria e os centros de pesquisas para o desenvolvimento da Inteligência Artificial.
Parece bom. Mas a receptividade não foi a esperada. E por motivos variados. Falta materialidade ao documento. O que provocou duras críticas da sociedade civil. Falta também peso político, que demonstre claramente o desejo do país de encarar IA não como uma tecnologia apenas, mas como relevante indutor econômico.
Vale lembrar que o domínio da IA é considerado hoje um importante diferencial competitivo na geopolítica internacional. Tanto que, nos EUA, uma nova lei – a de Autorização de Defesa Nacional para Ano Fiscal de 2021 – destina US$ 6,4 bilhões de financiamento do governo para iniciativas de IA e determina a criação de um Escritório Nacional de Iniciativa de Inteligência Artificial a ser liderado pelo Casa Branca. Mais de 20 países já têm hoje a sua estratégia nacional de IA. E outros tantos planejam lançar as suas. Já estávamos atrasados.
A The Shift conversou com diversos atores do ecossistema digital brasileiro para colher suas primeiras impressões sobre o documento publicado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Muitos o encaram, de fato, como um primeiro passo para definições de metas, ações práticas e dotação orçamentária.
“Diante da atual conjuntura política e econômica do país, há que se comemorar a publicação da estratégia. Ainda que genérica e com pontos que preocupam e requerem atenção, ao menos agora temos a base para provocar o governo na transformação de intenção em ação”, comentou Rodolfo Fücher, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Software.
O primeiro passo da associação, segundo Andriei Gutierrez, que desde 2017 lidera o seu Comitê Regulatório, é trabalhar pela elaboração de um modelo de governança multissetorial que auxilie o governo a tirar a estratégia do papel. E, em paralelo, alinhar objetivos com os definidos pela Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital). Essa sim, com objetivos e metas bem definidas.
“Eu diria que a gente agora tem a rota. Falta ajustar o plano de voo e colocar querosene no tanque para fazer andar”, afirma Andriei.
Em outras palavras, agora precisamos transformar o sonho em realidade por meio de uma governança muito bem estruturada.
Procurada, a Brasscom disse ainda estar analisando o documento. A ideia é sistematizar a visão dos associados em um comunicado nos próximos dias. Que pode até já conter sugestões de ajustes para o governo, se for o caso.
De modo geral, o ecossistema brasileiro de IA comemorou o fato de o documento traçar um diagnóstico correto das nossas deficiências, endereçar os pontos-chave e, aparentemente, não aparecer com nenhuma “jaboticaba”. Não inventa a roda de nada. Não propõe um padrão brasileiro de IA. Fala muito em tecnologias abertas. E o fato de ser muito semelhante a outras estratégias nacionais pode até ser positivo, desde que o governo esteja aberto para encontrar nossas fortalezas e trabalhar por elas.
No geral, em seus nove eixos temáticos, a Estratégia Brasileira apresenta um diagnóstico da situação atual da IA no mundo e no Brasil; destaca os desafios a serem enfrentados (falta de profissionais qualificados, alta carga tributária, excesso de burocracia etc).
“Há uma inconsistência em números citados, que poderiam ter sido olhados com maior atenção, como o gráfico da Statista que fala em 26 startups apoiadas no Brasil quando o próprio governo fala em 130. Mas é uma falha fácil de corrigir”, aponta Rodolfo Fücher.
Onde melhorar?
“A estratégia dá diretrizes. Mas ela não diz como, nem quando, nem porquê. Precisa dizer”, comenta Fabio Rua, diretor de Relações Governamentais e Assuntos Regulatórios da IBM América Latina. “Uma coisa eu penso que ainda dá tempo de fazer, e que eu senti falta, é o simbolismo político por trás de uma estratégia como essa, que tem um impacto econômico no país”.
Segundo estimativa da PwC, a IA já contribuiu com US$ 2 trilhões para o PIB global no ano passado. Em 2030, esse montante pode chegar a US$ 15,7 trilhões.
Fabio Rua também defende que se olhe para a governança. “Até porque a equipe designada para ajudar a construir essa estratégia é uma ‘equipe’, praticamente. Um homem só supervisionando tudo. Para implementar uma estratégia de IA em um país como o Brasil, é necessário um time multi ministerial que olhe as implicações para a educação, pesquisa e desenvolvimento, empreendedorismo, para absolutamente tudo”, opina. “Acredito que isso ainda será feito”.
Chamou atenção de muitos interlocutores da The Shift também o fato de um tema tão importante para o país passar despercebido pela grande imprensa. O que mostra que ainda estamos engatinhando.
Protagonismo na América Latina
A IA tem um componente geopolítico fundamental. Perpassa praticamente todo negócio data-driven no planeta. Fábio Rua enxerga oportunidades de o Brasil ser protagonista no uso e na oferta de serviços inteligentes para outros países da América Latina.
“Dá tempo de a gente ter protagonismo na região. O México, por exemplo, tem um plano de IA desenhado em parceria com a OCDE anos atrás, meio que ainda na gaveta. A Argentina está discutindo sem grande entusiasmo. O Chile tem a perspectiva de aprovar o seu ainda este ano. A Colômbia também tem diretrizes extremamente genéricas, que dão norte, mas não dizem muito para onde eles querem levar o país. Se a gente conseguir dar o peso necessário para essa estratégia, para que ela possa direcionar de forma mais propositiva como o Brasil apostará na IA, a gente pode sair na frente”, diz o executivo.
Algumas associações defendem que o Brasil passe por um processo análogo ao que deu origem ao “Ethics guidelines for thustworthy AI” europeu, embrião de uma possível regulação para a União Europeia. A Comissão Europeia adotou uma abordagem em etapas. Podemos fazer o mesmo.
Em linha gerais, será preciso formar uma comunidade interdisciplinar e diversificada de IA, ampliar o ecossistema para poder aumentar a produtividade da economia, aproximar a iniciativa privada da academia, fomentar o surgimento de uma explosão de startups, criar formas estáveis de financiamento, estimular a adoção da IA, oferecer mecanismos de requalificação da força de trabalho, ter uma arquitetura da produção de IA que proteja a sociedade, incentivar a criatividade, aumentar o fluxo de conhecimento através da internacionalização e da facilitação do trânsito de pesquisadores entre universidades, centros de pesquisa e empresas e diminuir a burocracia.
Na visão da academia, o Brasil não vai sair da situação de atraso em que se encontra se não investir em um ecossistema de inovação para IA que tenha foco no ser humano, seja transparente e capaz de formar profissionais de qualidade entre a nova geração.
O desafio atual é o de participar ativamente do novo ciclo tecnológico. E o primeiro passo é suspender os cortes de verbas para Educação, Ciência e Tecnologia. Todo mundo sabe dos desafios de ajuste fiscal do governo. Mas é preciso saber onde não cortar. Governar é fazer escolhas. E escolhas difíceis.
“O documento é raso no que diz respeito à educação. A gente tem na China o equivalente a um Brasil inteiro de pesquisa de IA no 5G. A gente precisa olhar com cuidado para a educação”, comenta Rodolfo Fücher.
O governo brasileiro está investindo em uma rede nacional de centros de pesquisa em IA. Segundo o MCTI, quatro de oito centros de IA estão para serem entregues. Isso é um gargalo. Se quisermos ter a IA como indutor econômico, é preciso muito mais. E a iniciativa privada pode ajudar a destravar esses centros. A olhar mais para P&D. A recorrer aos recursos disponíveis no Embrapii.
Regulação
Muitos defendem também que o Congresso e o Poder Executivo alinhem seus esforços em relação à IA. Há uma meia dúzia de PLs em tramitação. O Projeto de Lei 21/2020, de autoria do deputado federal Eduardo Bismarck, é um dos que tem avançado mais rápido. É também talvez o mais abrangente, estabelecendo princípios, direitos e deveres para o uso da IA no Brasil. Em caso de aprovação, criará o Marco Legal da Inteligência Artificial, definindo parâmetros seguros de uso, como o combate à discriminação de qualquer tipo, como a de gênero.
“Há agora uma base do Executivo para que ambos somem esforços”, diz Fabio Rua.
“Se conseguirmos ter gente dos dois lados olhando para barreiras tributárias e regulatórias, isso já vai ser um avanço para o país. Definições claras para o uso de dados abertos também, assim como o uso de sandboxes relacionados às startups”, comenta Rodolfo Fücher. “A segurança jurídica do país está em xeque, por conta da Reforma Tributária. Sem segurança jurídica de nada adianta tudo isso que a estratégia diz. Atrapalha tudo o que está escrito no documento”, afirma o presidente da Abes.