“Sinal vermelho para humanidade”, “aviso mais severo”, “catástrofe”. As manchetes que se seguiram à divulgação do relatório AR6 do Grupo 1 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), nesta segunda-feira (09/08), pintaram um cenário bastante preocupante sobre a situação do planeta. E não deixaram dúvidas sobre quem está botando lenha na fogueira da crise climática: a humanidade.
Com um estilo de vida ainda muito apoiado na queima de combustíveis fósseis – seja no uso intensivo de veículos, usinas térmicas movidas a diesel ou carvão, entre outros – a humanidade está emitindo gases de efeito estufa que estão levando a um rápido aquecimento do planeta. A projeção do relatório é que em duas décadas, a temperatura média global deve subir 1,5°C, alcançando o limite apontado como “sem volta” e por isso usado pelo Acordo de Paris para metas de redução de emissões. No Brasil, em julho, o desmatamento da Amazonia Legal cresceu 51% em relação aos 11 meses anteriores, de acordo com dados do Imazon.
“Infelizmente, o relatório traz só más notícias. Nós estamos recebendo esses alertas já há pelo menos 20 anos e, infelizmente, nada se modificou significativamente em relação às emissões de gases de efeito estufa”, lamenta o biólogo Carlos Alfredo Joly, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos maiores especialistas em biodiversidade do Brasil. Ele criou e coordenou o Biota-Fapesp, um programa de pesquisas que há mais de 20 anos estuda a conservação e o uso sustentável da biodiversidade em São Paulo. Segundo ele, o aquecimento global é um dos principais vetores a colocar em risco a biodiversidade, juntamente com o desmatamento e a perda de habitats, distribuição de chuvas e uso indiscriminado de fertilizantes nas lavouras. “A crise da biodiversidade está em um limite perigoso”, disse em um evento virtual da Fapesp.
Isso quer dizer que estamos rumando para o fim inexorável? O físico Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), tem uma visão diferente. “O relatório não é nada negativo. É exatamente o oposto”, afirma. Um dos maiores especialistas em crise climática do país, ele é membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC) e um dos autores do relatório AR 6. Para ele, o report traz um único caminho que pode ser seguido daqui para frente, do contrário os efeitos serão vistos nos próximos anos. Ele já afirmou anteriormente que as “mudanças climáticas exacerbam as diferenças sociais e podem trazer mais instabilidade no mundo”. No Brasil, diz, os impactos estão no aumento de temperatura de até 5,5°C na região central do país – ocasionando uma redução de 30% no volume de chuvas até o final do século. Isso significa que regiões tradicionalmente produtoras de soja e carne possam ser diretamente afetadas por condições climáticas. E também na elevação do nível do mar, que poderia subir até um metro, afetando cidades litorâneas.
Aqui, os dois especialistas comentam os problemas e os caminhos para o Brasil ser parte de um movimento global de iniciativas para conter a crise climática.
Disrupção é…
A ruptura de um processo ambiental e climático.
O relatório não é nada negativo. Ele coloca que o único caminho viável para a humanidade é a sustentabilidade do sistema econômico e social e a implementação de medidas na direção de reduzir emissões. O relatório mostra que melhorar nossa sustentabilidade, implementar grandes programas de reciclagem de material e respeitar mais a natureza é o único caminho para a humanidade. E esta mensagem é muito positiva.
Muitas das alterações que nós estamos fazendo no planeta não são reversíveis. As alterações na temperatura do planeta, por exemplo. Não há mais volta para o aquecimento que já foi feito, é uma mudança irreversível no clima do planeta. Agora, nós podemos evitar o agravamento desta situação e nós podemos evitar outros impactos que possam ser igualmente prejudiciais ao nosso desenvolvimento econômico.
A primeira coisa mais importante a ser feita no Brasil do ponto de vista da crise climática é zerar o desmatamento da Amazônia.
Para isso, nós já temos leis e basta um sistema que puna crimes ambientais que são responsáveis pelo desmatamento da Amazônia. Isso pode ser implementado imediatamente.
Nós não precisamos de nenhuma tecnologia nova para sairmos desta crise climática. Toda tecnologia que nós precisamos, nós já temos.
Modernizar a geração de eletricidade com mais energias renováveis a um custo mais barato do que o custo do que o custo de geração de energia fóssil. Energia solar e energia eólica hoje já estão com preços competitivos com a geração de energia térmica. Temos tecnologia de veículos elétricos que podem rapidamente e facilmente substituir a atual frota de veículos movidos a combustíveis fósseis, com ganhos de eficiência energética significativos e assim por diante.
Nós já temos os instrumentos em mãos para construir uma sociedade mais sustentável.
Ao melhorar a eficiência energética da indústria e diminuir ou zerar o desmatamento na Amazônia, de tal maneira a manter os serviços ecossistêmicos, em particular a chuva no Brasil Central, esse é o nosso caminho de sustentabilidade.
Nós precisamos ter governos municipais, estaduais e governo federal que atendam as necessidades da população, ao invés de atender as necessidades de um particular grupo econômico. Isso tem a ver também com a questão da melhoria da qualidade da nossa democracia.
Muito da legislação de proteção ambiental do Brasil está sendo atualmente destruído no Congresso brasileiro.
Hoje você tem um Congresso dominado por ruralistas e um governo que segue a linha de quanto maior a destruição dos nossos ecossistemas, melhor – quando na verdade é o contrário. Então isso tem que ser corrigido do ponto de vista da trajetória do governo brasileiro.
Fazer pressão no Congresso para que mantenha as leis que sejam essenciais para estruturar a sustentabilidade do país é absolutamente necessário.
Não é só do governo federal que a gente depende: nós dependemos muito também do trabalho dos representantes no Congresso brasileiro e eles são sensíveis à pressão dos cidadãos que eles deveriam estar representando.
Você tem que ter todos os níveis de pressão possível, além de eleger representantes do povo brasileiro alinhados com a questão da sustentabilidade da sociedade brasileira. Pressionar empresas, órgãos públicos, dar suporte a organizações não governamentais que vão na linha de um desenvolvimento mais sustentável – até que o país possa se alinhar com as nações desenvolvidos e voltar a ter crescimento econômico com sustentabilidade.
Não há a menor dúvida de que não há saída da crise climática sem a participação do setor privado.
Não há saídas individuais para uma crise que é global. Isso a pandemia deixou também muito claro. Os problemas globais exigem soluções globais. Então, essa questão de que ‘olha, eu posso andar de bicicleta em vez de andar de carro’ é perfeita, vai fazer muito bem para a sua saúde. Mas aqui na cidade de São Paulo, se você for trabalhar de bicicleta e outros sete milhões de pessoas tirarem os seus carros da garagem, a sua contribuição será irrelevante.
Já passamos da época de soluções individuais. Soluções individuais não têm condição de contribuir para um problema que é global. Nós precisamos é de políticas públicas consequentes.
Vamos precisar de uma a conjunção de fatores que dependem dos governos, das empresas e da população em geral – cada um fazendo a sua parte. E isto é absolutamente estratégico e é essencial.
A educação é essencial para todas as atividades humanas. Mas não vamos ser ingênuos de imaginar que só a educação pode resolver um problema desta magnitude. A educação é um elemento acessório, mas o elemento mais importante é obviamente a mudança de políticas públicas que atendam as necessidades da população.
Disrupção é…
Chegar a um ponto que não exista a possibilidade de retorno, pensando em crise climática. Quando a gente perde isso, temos uma disrupção que vai levar o planeta a grandes transformações e o impacto dessas transformações acaba sendo sempre muito maior nas populações mais periféricas – que sofrem mais diretamente e primeiro a dificuldade em se alimentar, que não têm condições de ter uma habitação decente. São os que mais sofrem com essas ondas de frio e que vão sofrer com as ondas de calor. Quem tem uma situação mais favorável vai se adaptar, gastar mais energia, mas não vai sentir tanto. A gente viu isso claramente na pandemia.
Nós vivemos três crises no momento: a sanitária em função da Covid-19, a climática e a da biodiversidade. A sanitária, eu acredito que em dois ou três anos, com programa de vacinação, sejamos capazes de controlar. A crise climática vai levar talvez dois séculos para conseguirmos resolver, mas é uma questão resolvível.
A crise da biodiversidade é irreversível: uma vez que eu tenho a extinção de uma espécie, eu a perdi para sempre. Não importa que daqui a 100 anos eu restaure as condições climáticas do local, aquelas espécies estão extintas. É permanente.
Se a gente for olhar a curva de emissões nos últimos anos, ela continua na mesma ascendente. Nem mesmo a diminuição da atividade econômica decorrente da pandemia no ano passado levou a uma diminuição perceptível ou significativa.
A cada cinco anos, quando sai um novo relatório, parece que naquele momento todo mundo se preocupa, mas infelizmente o que se vê depois é que não há mudanças significativas.
Aqui no Brasil, tudo o que se tinha construído em relação à diminuição de gases de efeito estufa foi destruído nesse governo, varrido de uma forma sistemática e deliberada. Nós não só aumentamos tremendamente o desmatamento da Amazônia, floresta que é uma das grandes reguladoras do clima mundial, estamos perdendo ao mesmo tempo uma quantidade inestimável de espécies, colocando outras espécies em risco. Estamos no limite do que a floresta tem capacidade, tem resiliência para sobreviver e conseguir se recuperar.
Estamos gastando uma quantidade absurda de óleo combustível nas nossas térmicas porque não houve uma programação para o déficit de chuvas – que é consequência do desmatamento. Nós estamos retroalimentando tudo o que é possível da forma negativa. Nós desmatamos com as queimadas e a destruição já chegou a um tal ponto que causou uma alteração na distribuição das chuvas, o que nos leva a acionar usinas térmicas movidas a óleo diesel – o que resulta em um aumento enorme na quantidade de gases de efeito estufa.
Se a gente continuar nessa progressão e atingir um ponto que não seja mais possível retornar, a nossa própria sobrevivência no planeta será colocada em risco.
Um país que tem condição de gerar energia solar, da forma como nós temos, não ter uma alternativa que não sejam as usinas térmicas mostra um erro de planejamento, de futuro e, principalmente, um erro na leitura dos sinais que vêm desses relatórios, sejam do IPCC, sejam do IPBS, no caso da biodiversidade. Nós estamos numa rota completamente irracional aqui no Brasil.
Entendo que ninguém está de fato ganhando, a não ser uns poucos que têm algum ganho imediato em termos de grilagem, de ocupação de terras, de um retorno que é pessoal. Não há uma melhoria na qualidade de vida das pessoas que moram na Bacia Amazônica, pelo contrário, são as mais prejudicadas.
Tivemos uma boa notícia com o retorno dos Estados Unidos ao Acordo de Paris. Mas o Acordo de Paris não é suficiente para reverter essa crise: os países precisam se comprometer mais.
Minha percepção é de que os governantes já entenderam e alguns países do mundo estão fazendo esforço para reverter, mas ainda é insuficiente. Nós precisamos que também o cidadão sinta isso e ele próprio comece a tomar decisões de mudanças nos seus padrões de consumo. Sem essas mudanças no padrão de consumo, nós não vamos conseguir reduzir as emissões significativamente.
Não temos mais tempo para esperar que o outro faça primeiro.
Precisamos nos tornar mais conscientes no consumo de comida, por exemplo, diminuir a quantidade de carne, principalmente de carne bovina. Há outras alternativas de proteína animal com impacto menor. Nós precisamos nos movimentar mais sem dependermos do carro para ir à padaria que fica a quatro, cinco quadras de casa. Precisamos mudar o destino final das embalagens, seja do vidro, do plástico, do papelão. A gente precisa ter uma participação mais ativa da população. Não são sós os governos; nós, individualmente, temos culpa também.
O setor industrial – tanto na Europa quanto no Japão e no Brasil – é um setor altamente preocupado. Aqui a gente vê empresas como a JBS se comprometerem a zerar as emissões, a Natura que já tem essa preocupação e já faz isso há muito mais tempo, a Ambev que está substituindo o uso de plástico no seu sistema de produção e de venda, principalmente aqueles sacos PECs de enlatados, que são de péssima qualidade, nem para reciclagem servem. Isso está acontecendo. A gente vê alguns governos tomando atitudes. E há várias iniciativas individuais da sociedade, através de organizações não governamentais ou pode ser uma atitude individual minha.
O problema é que essas iniciativas todas não estão na escala e na velocidade adequada. A gente precisa colocar tração nisso.
Boa parte do compromisso brasileiro no Acordo de Paris está relacionado à restauração de florestas. Nós não precisaríamos diminuir nossas emissões, mas faríamos a restauração das florestas permanentes e estaríamos retirando CO2 da atmosfera através do crescimento dessas árvores. Essa é uma solução espetacular porque atende tanto a questão das mudanças climáticas, como a questão da biodiversidade. Porque a ideia é você fazer a restauração, com espécies nativas, em áreas que eram florestadas. Você está restaurando a biodiversidade e ao mesmo tempo está retirando CO2 da atmosfera.
Se nós fizermos uma aplicação do nosso Código Florestal com as restaurações previstas das áreas de reserva legal e das áreas de APP, nós já estaríamos dando uma gigantesca contribuição. Se além disso a gente fizer restauração conforme o Acordo de Paris, a gente pode diminuir ainda mais aquilo que nos comprometemos. Por que essa não é uma atividade focada em dar escala a esses processos de restauração? Os acordos preveem que as empresas sejam responsáveis pelo ciclo completo de seus produtos. Elas têm que ter o compromisso de alguma forma recolher e reutilizar suas embalagens. Isso não tem acontecido.
O recolhimento de pilhas, por exemplo, pode gerar retorno econômico para a própria indústria. Antes, você via caixas para recolhimento em bancos, supermercados. Sumiu, acabou. Isso é uma coisa que causa um impacto ambiental gigantesco. Essas coisas precisam ser reavaliadas e adequadas para essas mudanças.
Você vê o conjunto de eventos extremos que tivemos ao longo do último mês. ‘Ah, mas aqui no Brasil a gente teve um frio em alguns estados que a gente não via há 50 anos, então não está tendo aquecimento’. Está tendo! O aquecimento é a mudança de todo o sistema de circulação de ventos. Por que ali está tão frio? Está tão frio porque aquela circulação que fica normalmente restrita à Antártida se enfraqueceu a tal ponto que ela acabou não mantendo mais a friagem na Antártida e houve esse resfriamento enorme em outras partes.
No Canadá, nós tivemos temperaturas de 50°C. Na China, inundações gigantescas. Na Europa, cidades sendo destruídas por inundações como nunca se havia registrado historicamente. Tudo isso é resposta a essas alterações.
Nós estamos caminhando para um ponto em que a sobrevivência vai ficar cada vez mais cara. Nós vamos ter que investir cada vez mais em estruturas que nos protejam de alterações que nós mesmos causamos.
A ideia para a 15ª Convenção da Diversidade Biológica, que está programada para outubro, é se aprovar um plano de ação até 2050. Com a definição de uma série de mecanismos para que essas mudanças estejam em andamento até 2030, para que a gente possa chegar num projeto que é definido como Vivendo em Harmonia com a Natureza.
É mais ou menos essa a janela que todos nós neste planeta temos, até 2050, para realmente acertarmos as transformações necessárias – que são as chamadas mudanças transformativas. Sairmos dessa dependência de uma matriz de combustíveis fósseis, evoluir rapidamente para alternativas menos impactantes, não podemos mais continuar queimando petróleo e carvão da maneira que a gente vem queimando.
Um mês depois acontece a 26ª Convenção Quadro da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP26), que se espera que vá colocar também janelas de tempo. Esse relatório do IPCC já estará sendo considerado, há outros dois relatórios, o do Grupo 2 e do Grupo 3, que só devem ficar prontos em 2022 e aí em conjunto vão formar o 6° Relatório Global do IPCC. Eu acho que essas agendas estarão colocadas e imagino que 2050 também seja o limite para que a gente tenha conseguido acelerar essas mudanças transformativas a ponto de realmente conseguirmos reverter o avanço da crise climática.
Como prioridade, não precisamos olhar para tudo aquilo que foi degradado porque dificilmente teremos condições de recuperar tudo. Mas há coisas pontuais que podem funcionar bem. Será que para restaurar eu preciso produzir mudas, fazer plantio como fazemos em áreas altamente degradadas que foram usadas por décadas para plantio de cana ou para pasto? Ou será que se eu suspender essa intervenção negativa que estou tendo, a floresta vai conseguir se recuperar sozinha? As plantas vão brotar, você vai ter germinação de sementes, vai formar uma capoeira, em 20, 30 anos, volte a ser uma formação florestal. E ao longo desse período vai retirando carbono da atmosfera. Eu posso pensar em soluções aonde eu tenho uma restauração de ambientes que são muito importantes, as áreas de manguezais, as áreas lagunares em que você tem os grandes estuários e a formação de verdadeiros berçários de muitas espécies. Vamos usar um pouco mais essas características inerentes ao próprio ecossistema, que ele responde positivamente.
Eu sou professor universitário. Faz parte da profissão a gente ser otimista. Se um professor não for otimista, não entra na sala de aula para formar pessoas. Como é que eu vou estimular um grupo jovem a trabalhar com biodiversidade, se eu acredito que em 2050 o mundo vai estar de pernas para o ar? Não dá. A gente continua buscando soluções e eu vejo quanto as minhas aulas se transformaram, de quando eu comecei a lecionar Ecologia Vegetal na Unicamp, do que eu leciono hoje. Automaticamente eu estou inserindo nas minhas aulas todos esses aprendizados, essas mudanças que aconteceram, passando não apenas o conhecimento, mas também conscientizando as pessoas sobre a necessidade de mudanças individuais importantíssimas que precisam acontecer também.
Veja, 2050 não está tão longe. O tempo é realmente muito curto.
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