A maioria das empresas está acostumada a analisar dados adquiridos de CRMs, logs de software e outras fontes internas. No entanto, poucas aproveitam todo o poder dos dados externos à medida que mais fontes se tornaram disponíveis. Menos ainda têm usado dados para orientar suas estratégias de marca e comunicação. Foi partindo dessa constatação que a gaúcha Cíntia Gonçalves decidiu largar sua longa carreira no mercado publicitário para empreender.
Após 23 anos na AlmapBBDO, desenvolvendo estratégias para negócios e marcas, Cíntia percebeu que as tradicionais metodologias de pesquisa e investigação já não davam conta de produzir os insights necessários para o mundo BANI (frágil, ansioso, não linear e incompreensível). Daí tratou de combinar sua paixão pelas pessoas com a paixão pelos dados para ajustar melhor as lentes, conectar pontos e produzir diagnósticos bem além dos previsíveis.
Assim, em meio à pandemia, nasceu a Wiz&Watcher Cultural Strategy, hoje já com mais de 15 clientes, entre grandes marcas, empresas de mídia e organizações sociais que, diante das rápidas transformações que vêm impactando suas relações com os consumidores, também sentiram a necessidade de modificar o processo de criação de estratégias.
“As estratégias e inovações devem ter a cultura como ingrediente de inspiração e de constante input para o novo. Precisamos abandonar conceitos estáticos e sólidos demais nas estratégias e trazer ideias ‘moldáveis’, reinterpretadas ou reinventadas, acompanhando o ritmo de evolução dos indivíduos e suas dinâmicas sociais”, explica Cíntia. E só se faz isso combinando as ferramentas tradicionais com a Ciência de Dados.
É sobre esse novo olhar para a estratégia, baseado na união do big data com a curiosidade, criatividade e análise humana, que Cíntia fala nessa entrevista.
Disrupção é…
“Estar aberto ao novo. Se permitir e ser humilde no não saber. Estar verdadeiramente interessada nos porquês. Se você não tem curiosidade, não tem disrupção. É ela que fará com que a gente não desvie o olhar para o que está logo ali na nossa frente, capaz de fazer a diferença.
Uma das coisas super bacanas na minha vida profissional em agência foi o fato de poder transitar em assuntos muito diferentes. De manhã eu falava sobre caminhões, de tarde sobre beleza e à noite sobre setor financeiro. Eu sempre gostei dessa diversidade de assuntos e diversidade de problemas. Que podem ser muito iguais, apesar de relacionados a mundos muito diferentes, e também muito novos, dependendo do se está investigando.
Mas comecei a perceber, uns dois anos antes de a minha decisão de fazer uma transição de carreira, que o mundo, inclusive da comunicação, estava mudando de uma forma muito evidente e acelerada, e continuávamos traçando estratégias da mesma forma que fazíamos há anos.
Essa percepção começou a me deixar inquieta. Comecei a me perguntar se ainda havia espaço para a estratégia. Para o pensamento de longo prazo. E se era possível encontrar outras formas de realizar esse trabalho. Então, ainda na agência, comecei a trazer um pouco do big data para o processo de construção de estratégia.
Se as coisas mudam tão rapidamente, é preciso estar conectado à tudo o que está mudando, para poder desenvolver uma estratégia que não vá nascer hoje e morrer amanhã. Precisamos traçar cenários sim, mas em movimento.
Para fazer isso, comecei a me conectar a diversas startups, com o propósito de desenvolver uma plataforma tecnológica que me permitisse exercitar outras maneiras de olhar para estratégia.
A partir desse exercício entendi ser possível aplicar esse novo modelo não só em comunicação, mas em outros universos. Temos à disposição um mundo de novas metodologias comportamentais, aliadas ao big data, que nos permitem navegar com mais segurança e, por que não, de forma muito mais interessante neste novo contexto.
É importante não olhar só para as ciências e análises de comportamento (como antropologia, psicologia, semiótica), mas também para a ciência de dados. Juntas, elas nos permitem interpretar sinais da cultura e da sociedade no aqui e agora e no amanhã, gerando insights para inovações de produtos, plataformas de conteúdo, novos negócios e posicionamentos, nos dando combustível para construir o futuro, e não apenas prevê-lo.
No início da pandemia, todo esse pensamento desaguou na vontade de empreender. Foi quase que um processo curativo, para mim, que fui sempre muita apaixonada pelo que fazia. O fato de estar tão voltada para dentro, no início da pandemia, e de estar incubando o que já me parecia um novo negócio, me impulsionou a fazer essa transição de carreira. A Wiz&Watcher Cultural Strategy nasce desse movimento. É uma empresa com um modelo operacional bem conectado com o hoje, que aposta muito em processos colaborativos. Que aposta na união de gente que entende de pessoas, que sabe fazer as perguntas certas, com a de gente que entende de tecnologia e consegue fazer a captação e o armazenamento dos dados de modo a permitir a sua análise, da forma mais adequada, para conceituar novos empreendimentos e iniciativas, construir posicionamentos de marcas e produtos e criar e atualizar o propósito de empresas e suas causas sociais.
O que fazemos é somar tecnologia e dados com a curiosidade, a criatividade e a análise aportadas por um time multidisciplinar.
A nossa plataforma, a Cultural Map, foi desenvolvida em parceria com o Instituto Provokers, que aporta o conhecimento estatístico e de armazenamento e gestão de dados. Parte do time da Wiz, hoje, é o time da Provokers. Além disso, temos uma equipe própria, de seis pessoas, e muitos colaboradores, de universos diferentes, que vamos plugando para aportar novos olhares para os dados que temos para analisar. A cada projeto procuramos as melhores mentes, de cada segmento — da música, da moda, do cinema —, já que a visão de estratégia está muito ligada à cultura e às mudanças de comportamento.
Na Wiz, acreditamos que as estratégias e inovações devem ter a cultura como ingrediente de inspiração e de constante input para o novo, visto que a cultura é expressa onde nós estamos e para aonde vamos, o tempo inteiro.
Nesses dois anos de empresa, mais de 1500 tags foram desenvolvidas com especialistas, semiólogos, sociólogos e psicanalistas para mapear manifestações culturais ao redor de temas de reflexão e debate da sociedade. A Cultural Map conta com mais de 30 milhões de expressões culturais manifestadas em forma de músicas, filmes, games, memes, registros públicos nas redes sociais e no mundo acadêmico, referentes a diversos assuntos, que nos ajudam interpretar temas específicos e a enxergar padrões.
Muita gente no mercado ainda acredita que, se temos que agir rápido, os dados que já possuímos sobre comportamentos e padrões de nossas audiências são suficientes para a tomada de decisão e que não há a necessidade de olhar para o médio e longo prazo. E isso é falso. Há algumas armadilhas, nesse pensamento. Primeiro, com relação à hipótese de que os inúmeros dados que temos sobre a nossa audiência são suficientes. E não são. Quem não está com você, está onde? Pensa o quê? Influencia quem? Segundo, porque ao não olhar para frente, a chance de tropeçar é enorme.
A estratégia dos dias de hoje é bifocal. Olha longe e perto, simultaneamente, enquanto as coisas acontecem, aprende, se refaz… E não tem medo do novo.
Nossos clientes hoje estão abertos a esse novo modelo de olhar. Como nós, também são curiosos, com coragem de experimentar. Mas, quase sempre, nossa abordagem inicial lança mão de metodologias e ferramentas já conhecidas, que sabemos onde vão chegar, e apresenta o novo como uma possibilidade. Um teste, já que nem todos estão dispostos a serem early adopters.
Tem dado certo. No fundo, nossa abordagem é um convite à adaptabilidade.
Gradualmente, a importância de olhar para o soft data, como a gente propõe, e não somente para o hard data (o dado numérico pesado), passa a fazer sentido para esses clientes. Eles começam a perceber que o dado qualitativo, da conversa, da opinião, tem muito valor.
Quanto mais perguntamos os por quês, enquanto olhamos os dados, mais interessante a informação fica, e também a sua aplicabilidade.
Como monitorar a cultura? Bom, esse é o nosso diferencial. Precisamos olhar para tudo aquilo que é expresso pelas pessoas publicamente, em diferentes canais, em diferentes formatos. A princípio, um trabalho de scraping de dados, que depois é agrupado pela nossa ferramenta em três grandes eixos de manifestação e de conversa: o eu, o outro e os ambientes e sistemas onde estou inserido.
O desdobramento desses eixos temáticos em tags é o ponto de partida para o monitoramento contínuo pela plataforma. O trabalho do nosso time é ajustar o foco e mergulhar nesse universo, identificando os pontos de interseção, os novos padrões, interpretando tudo o que faça sentido para o cliente.
Às vezes a gente tende a olhar para os dados só a partir dos picos. Mas são várias ondas… as grandes e as marolinhas. E precisamos prestar atenção nas duas. Quando pensamos em estratégia, o volume mais baixo também importa. O que está em um volume baixo hoje pode explodir em poucos dias, semanas ou meses.
Há temáticas ainda em evolução que têm muita aderência com o que a marca ou a empresa é hoje e com o que elas querem ser no futuro. A gente joga a rede no mar e colhe várias micronarrativas, que vão sendo selecionadas de acordo com o problema que está se tentando resolver, com o público a ser atingido. A partir desse mapa, traçamos diagnósticos que orientem e facilitem o desenho de soluções criativas.
Provocamos e somos provocados pelos clientes. Agora, por exemplo, estamos fazendo um trabalho grande sobre primeira infância para a Fundação Maria Cecília. Eles vieram com a demanda e fomos devolvendo formas novas de investigação sobre como falar sobre esse tema para as classes C e D no Brasil. E esse diálogo faz o trabalho ganhar novos contornos.
Não existe um modelo único. Cada projeto tem a sua especificidade. É um aprendizado constante. Depende muito da marca, ou da organização, dos universos que ela barca, os temas pelos quais ela transita.
Tenho muita vontade de aplicar novos conceitos de estratégia para o mundo das startups, por exemplo. É um mercado para o qual estamos olhando. Elas costumam ter um mundo de dados, mas também o desejo de andar muito rápido. O que, muitas vezes, as impedem de olhar atentamente para os dados que têm. Se pudermos combinar esses dados internos com os dados que eu já tenho na Cultural Map, talvez possamos gerar debates riquíssimos para ajustes de estratégia. Seria um desafio super interessante.
Outra frente que nos interessa é a produção de conteúdo nos segmentos de cultura e entretenimento. Acredito que temos muito a oferecer.
Hoje dedico muito tempo à mentoria do time. Acredito que todo empreendedor deveria dedicar um tempo para isso. É uma boa forma de engajar o time e, até, de aprender junto. A ideia de mentoria reversa também é muito importante. Você precisa ter no time pessoas que te questionem, que discordem de você. Te tirem da zona de conforto.
Nesse momento ainda não estou buscando um investidor. Porque sinto que ainda estamos aprendendo mesmo. Ainda é cedo. Tivemos um ano ótimo em 2021, com vários clientes. Mas o melhor foi a curva de aprendizagem, impulsionada a partir da construção do relacionamento com os clientes. Queremos construir relacionamentos perenes, no qual a estratégia esteja muito presente na sua execução também.
Gosto de pensar no “produto estratégia” meio como uma massinha de modelar. Ele vai assumir formatos diferentes conforme o momento da marca e do cliente. Vai desafiar nossa inteligência e criatividade com suas mil possibilidades de formatos e cores. E isso pede um acompanhamento constante. Então, há modelos de negócio na mesa sobre os quais a gente não tinha pensado antes. E que são muito diferentes do modelo de consultoria convencional.”