The Shift

“Amores Materialistas” mostra que o bug do milênio é emocional

“Amores Materialistas” (Materialists, 2025), da diretora Celine Song, é um filme ambidestro, entre o que é autêntico e o que é socialmente aceitável.

Vendo o filme, não pude deixar de pensar em como se conecta com temas atuais, abordando a nossa tentativa, tão contemporânea, de transformar tudo o que é vivo em planilha. Num mundo que hoje culpa a inteligência artificial por “desumanizar” as relações, o filme faz o movimento oposto: nos obriga a encarar o quanto já vínhamos automatizando sentimentos muito antes da chegada dos algoritmos.

A protagonista, Lucy (Dakota Johnson), é uma casamenteira de Nova York, que organiza encontros perfeitos com base em métricas: altura, renda, status, estilo de vida. Tudo calculado, eficiente, esteticamente coerente. Até que o sistema falha, ou melhor, até que o humano irrompe. Lucy se vê dividida entre um amor imperfeito com seu ex, que luta financeiramente, e o par ideal que parece preencher todos os campos da planilha emocional.

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Mas o verdadeiro conflito é interno: Lucy se tornou usuária do próprio modelo que construiu. Ela aplica nos relacionamentos a mesma lógica transacional com que estrutura suas combinações amorosas. Quando o algoritmo emocional para de rodar, ela descobre o bug essencial: o sentimento não cabe nos números.

O filme, longe de demonizar a tecnologia, é como um espelho de parque de diversões: aumenta drasticamente o que já vislumbramos.

O amor como MVP emocional

“Amores Materialistas” não fala sobre IA, mas sobre o que a IA amplifica: nossa tendência de transformar tudo em métrica, até o que é emocional. A obsessão por medir o imensurável. Lucy vende o “encaixe perfeito” da mesma forma que empresas vendem “propósito”, “cultura” e “experiência”. Palavras que nasceram humanas, mas foram convertidas em dashboards, resultados e relatórios trimestrais.

Quando sentimentos entram na lógica da performance, a autenticidade passa a competir com a conveniência. Talvez seja essa a metáfora mais sofisticada do filme: o amor virou um MVP emocional, mínimo produto viável de conexão, pronto para ser testado, ajustado e escalado.

Lucy tenta prever o que não é previsível. É o mesmo impulso que move o executivo que acredita poder calcular comportamento humano em frameworks. Mas a beleza e o caos residem justamente no imponderável. Quanto mais tentamos prever, mais afastamos a possibilidade de ser surpreendidos. E, paradoxalmente, é no erro, na vulnerabilidade e na imperfeição que reside o que há de mais humano.

Entre a eficiência e o sentir

O que o filme provoca é uma pergunta incômoda: será que a tecnologia realmente nos desumaniza, ou apenas espelha a forma como temos nos desumanizado em nome da eficiência? A IA não cria o vazio, ela o evidencia. Lucy descobre que sentir é arriscado, que não há dado que antecipe emoção e que o verdadeiro “resgate da humanidade” começa quando paramos de terceirizar o sentir.

“Amores Materialistas” é menos sobre algoritmos e mais sobre consciência. Sobre o preço de confundir valor com validação, performance com afeto, eficiência com essência.  Quando tudo vira dado, até o sentir entra em compliance.

E, diante disso, talvez a pergunta mais urgente não seja o que a tecnologia faz com a humanidade, mas o que a humanidade tem feito de si mesma.