Durante anos, o debate corporativo sobre inteligência artificial se organizou em torno de uma pergunta relativamente simples: o que essa tecnologia é capaz de fazer? O relatório “Tech Trends 2026”, da Deloitte, parte de outra premissa. Ele assume que a IA já funciona. O problema agora é estrutural.
A mudança de enquadramento é sutil, mas decisiva. O relatório descreve um choque já em curso entre sistemas cada vez mais autônomos e organizações desenhadas para um ritmo, uma lógica e uma economia que não existem mais. Há hoje uma incompatibilidade estrutural entre a IA — especialmente agentes e sistemas autônomos — e os modelos atuais de operação, governança e infraestrutura.
Essa fricção começa a aparecer justamente no momento em que a IA deixa de ser experimento. Pesquisas publicadas nas últimas semanas mostram que a tecnologia está, de fato, saindo do laboratório. Um levantamento recente com CIOs indica que cerca de 60% das grandes empresas já operam algum sistema de IA em produção, e mais de 90% planejam aumentar investimentos em 2026. O movimento é real e acelerado.
Mas esses mesmos estudos apontam uma assimetria importante: produzir não é o mesmo que gerar impacto consistente.
Isso ajuda a contextualizar um dos dados centrais do Tech Trends 2026: embora 38% das organizações estejam testando agentes de IA, apenas 11% os colocaram efetivamente em produção com impacto mensurável. Mais de um terço das empresas não tem nenhuma estratégia para agentes, enquanto 42% ainda estão desenvolvendo um roteiro estratégico.
O descompasso não é apenas de maturidade, mas de definição. Muitos dos casos de uso que as organizações identificam para agentes são, na prática, oportunidades de automação, e não habilidades de tomada de decisão autônoma — o que ajuda a explicar por que tantos projetos não avançam além do piloto.
Ainda assim, a expectativa é clara: quase oito em cada dez líderes de tecnologia preveem uma integração significativa de agentes de IA em fluxos de trabalho estruturais nos próximos cinco anos, e quase dois terços das organizações planejam aumentar os investimentos em IA nos próximos dois anos. O contraste entre ambição e preparo reforça a tese central do relatório: avançar não depende apenas de investir mais, mas de definir com precisão onde a autonomia gera valor real — e onde ela apenas automatiza complexidade existente.
O avanço da IA agêntica expõe um problema novo, ainda pouco nomeado: trabalho não-humano sem modelo de gestão. Agentes consomem recursos, executam tarefas, tomam decisões e aprendem com dados operacionais, mas não se encaixam nos sistemas tradicionais de avaliação de desempenho, controle financeiro ou responsabilização operacional.
O Tech Trends 2026 sugere, ainda que de forma implícita, que escalar agentes exige algo além de engenharia: novas métricas, limites claros de autonomia e mecanismos contínuos de supervisão. Sem isso, agentes tendem a ser tratados como automação avançada — o que reduz seu potencial e amplia riscos.
A dificuldade em colocar agentes em produção não é, portanto, um sinal de imaturidade tecnológica. É um indicador de que as estruturas organizacionais ainda não foram redesenhadas para absorver sistemas que operam com graus crescentes de autonomia.
A evidência empírica recente reforça o argumento da Deloitte: a tecnologia avançou mais rápido do que a capacidade organizacional de absorvê-la.
Quando o problema deixa de ser tecnologia
Um dos pontos mais negligenciados nas leituras externas do relatório é que o Tech Trends 2026 funciona, na prática, como um obituário do modelo clássico de TI corporativa.
Modelos desenhados para entrega incremental de serviços, ciclos longos de planejamento e controle por camadas não escalam quando decisões passam a ser tomadas em ciclos de aprendizado contínuo, muitas vezes sem intervenção humana direta. Não por acaso, apenas 1% dos líderes de TI entrevistados afirmam que nenhuma mudança relevante em seus modelos operacionais está em andamento. O dado não indica entusiasmo com a IA. Indica que o modelo anterior deixou de ser suficiente.
Estudos recentes convergem com essa leitura ao mostrar que a maior parte dos investimentos em IA ainda se concentra em tecnologia, enquanto pessoas, processos e governança recebem uma fração mínima dos recursos. O desequilíbrio ajuda a explicar por que tantas iniciativas ficam presas entre o piloto e a escala.
O relatório da Deloitte é explícito: infraestruturas construídas para estratégias cloud-first, processos desenhados para trabalhadores humanos e modelos de segurança baseados em perímetro não conseguem sustentar sistemas que aprendem e decidem continuamente. Não se trata de aprimoramento incremental. Trata-se de reconstrução.
Essa fragilidade se torna ainda mais evidente com a adoção de agentes. Quando sistemas passam a executar trabalho de forma autônoma, surge um problema novo: trabalho não-humano sem modelo de gestão. Agentes consomem recursos, tomam decisões, aprendem com dados operacionais e afetam resultados, mas não se encaixam nos sistemas tradicionais de avaliação de desempenho, controle financeiro ou responsabilidade operacional.
Não por acaso, pesquisas recentes mostram que interoperabilidade, governança e controle de comportamento aparecem com mais frequência do que desempenho técnico entre as principais preocupações dos líderes que tentam escalar agentes.
O mesmo padrão se repete na infraestrutura. Nos últimos dois anos, o custo unitário de inferência caiu de forma acentuada. Ainda assim, empresas relatam crescimento acelerado das despesas totais com IA, impulsionado pelo volume de uso, pela complexidade dos fluxos e pela necessidade de disponibilidade contínua.
O paradoxo não é tecnológico. É econômico.
Infraestruturas desenhadas para workloads humanos e intermitentes não se adaptam a sistemas que operam de forma permanente. O que está em jogo não é cloud versus on-prem, mas previsibilidade, latência e controle de custo em um regime de decisão contínua. A expansão recente de práticas como FinOps para além da nuvem pública reflete essa mudança: a IA, em escala, passa a se comportar menos como software e mais como infraestrutura crítica.
Quando a inteligência deixa as telas e passa a operar fábricas, armazéns, veículos e cadeias logísticas, essa transformação se aprofunda. Sistemas autônomos introduzem um regime de risco diferente. Erros deixam de ser facilmente reversíveis. Latência, confiabilidade e segurança deixam de ser atributos desejáveis e passam a ser condições mínimas de operação.
A chamada “IA física” amplia ainda mais esse descompasso estrutural. Quando sistemas autônomos passam a operar fábricas, armazéns, veículos e cadeias logísticas, erros deixam de ser abstratos ou reversíveis. Decisões passam a ter impacto material imediato, elevando drasticamente a exigência por previsibilidade, certificação e governança.
O relatório trata esse movimento com pragmatismo. O foco não está em robôs como símbolo de avanço tecnológico, mas na dificuldade de integrar sistemas autônomos a ambientes regulados, operacionais e altamente interdependentes. Nesse contexto, latência, confiabilidade e segurança deixam de ser diferenciais e passam a ser pré-condições operacionais.
A IA física torna explícito um ponto que, no digital, ainda pode ser adiado: quando a inteligência age no mundo real, a governança deixa de ser opcional.
Reconstruir ou amplificar falhas
O mesmo raciocínio vale para cibersegurança. A IA não cria riscos inéditos; ela opera riscos conhecidos em outra velocidade. Ataques passam a ocorrer em ciclos incompatíveis com respostas puramente humanas, o que exige defesas igualmente automatizadas. A segurança deixa de ser um controle posterior e passa a ser parte da arquitetura e do modelo operacional.
Lido em conjunto com dados recentes, o Tech Trends 2026 aponta para uma conclusão desconfortável: organizações com baixa maturidade de processos tendem a piorar ao adotar IA. Automatizar o que não funciona não gera eficiência. Amplifica fragilidades.
A vantagem competitiva, portanto, não virá de quem adota IA primeiro, mas de quem reconstrói mais rápido sua forma de operar. Empresas desenhadas para melhoria sequencial não conseguem competir com sistemas que aprendem continuamente. A distância entre líderes e retardatários tende a crescer, não porque uns tenham modelos melhores, mas porque uns conseguem operar em ciclos de aprendizado e outros não.
O Tech Trends 2026 não oferece conforto. Ele oferece um aviso. A IA já passou do ponto em que pode ser tratada como projeto experimental. Não se trata de prever o futuro da IA, mas de reconhecer que as estruturas atuais não sustentam sua escala.
O relatório aponta, de forma consistente, a necessidade de um roteiro organizacional claro para o uso da IA — um roteiro que vá além da inserção pontual de capacidades em processos existentes e enfrente, de forma explícita, como a empresa opera, decide e assume risco em um ambiente de aprendizado contínuo.
Outros destaques do relatório
Estamos entrando em uma das transições mais decisivas na tecnologia corporativa em décadas. Da autonomia inteligente guiada a dados federados, redes inteligentes de sensoriamento e softwares baseados em resultados, as mudanças que virão serão profundas.
Todas as organizações ouvidas pela Deloitte estão descobrindo a mesma verdade: o que as trouxe até aqui não as levará adiante.
A infraestrutura construída para estratégias que priorizam a nuvem não consegue lidar com a economia da IA. Processos projetados para trabalhadores humanos não funcionam para agentes. Modelos de segurança criados para defesa perimetral não protegem contra ameaças que operam na velocidade das máquinas. Modelos operacionais de TI criados para entrega de serviços não impulsionam a transformação dos negócios.
Ao longo do relatório deste ano, você conhecerá líderes tecnológicos que estão navegando com sucesso por essa grande transformação. Eles não têm todas as respostas, mas existem padrões notáveis que iluminam o caminho a seguir.
- Eles priorizam os problemas, não a tecnologia. O CIO da Broadcom afirmou: “Sem focar em um problema de negócios específico e no valor que se deseja obter, é fácil investir em IA e não ter retorno.”
- Especificamente, seus maiores problemas. CEO da UiPath: “Em vez de ficar preso em um ciclo de provas de conceito intermináveis, considere atacar seu maior problema e buscar um grande resultado.”
- Eles priorizam a velocidade em detrimento da perfeição. O CIO da Western Digital afirmou: “Preferimos falhar rapidamente em pequenos projetos-piloto do que perder a onda completamente.”
- Eles projetam pensando nas pessoas, não apenas para elas. O Walmart envolveu seus funcionários na criação do aplicativo de agendamento, que inclui troca de turnos, visibilidade da escala e controle por parte dos funcionários. O resultado: o tempo de agendamento caiu de 90 minutos para 30 minutos, e as pessoas realmente usaram o aplicativo.
- Eles encaram a mudança como algo contínuo. O CIO da Coca-Cola descreveu a jornada da empresa como uma transição de “O que podemos fazer?” para “O que devemos fazer?”. Essa mudança — de priorizar a capacidade para priorizar a necessidade — é o que diferencia a experimentação produtiva do purgatório dos projetos-piloto.
Vale ler também
- Parceria Deloitte–Wall Street Journal hospeda um hub específico “Tech Trends 2026: AI Comes of Age”, em que o relatório é apresentado como peça central para discutir como organizações líderes estão escalando IA para resultados e impacto, dirigido a CIOs, conselhos e executivos de risco/compliance.
- Em entrevistas a veículos de negócios e de tecnologia, como a CRN, o CEO da Deloitte Consulting, Jason Salzetti, ecoa diretamente o framing do Tech Trends 2026 ao afirmar que 2026 deve ser o ano em que se supera o “medo de IA” e se coloca a ênfase em ganhos de produtividade, modelos de negócio baseados em valor e em orquestração de valor com parceiros de nuvem, alinhando essas mensagens com os temas de AI at scale e outcome‑based models discutidos no estudo.